A responsabilidade de todos
Escreve quem sabe
2020-06-04 às 06h00
O título que resume o tema desta crónica não vai no sentido de saber interpretar a virose que originou a pandemia COVID19, mas inspira-se no seu imaginário para considerar que as nossas práticas culturais ditas tradicionais requerem a sua vivência em liberdade, posto que nelas e por elas se transmitem todos os vírus que as podem condicionar e desenvolver, posto que nelas e por elas se assumem os riscos de prosseguir ou de mudar, posto que nelas e por elas se expressam os medos e as fantasias, posto que nelas e por elas se tomam as decisões de realização e de cumprimento dos eventos mais díspares.
Pressuponho que o leitor interrogue aqui os conceitos de práticas culturais tradicionais e que peça a explicitação dos vírus, dos riscos, dos medos e das decisões. Dá sempre jeito tomar um exemplo de alavanca: o comboio servirá o efeito. Quando William Thoms cunhou para o léxico dos povos a palavra folclore, deu como prova eminente o perigo que a representação do comboio então já possuía, nos caminhos do progresso tecnológico e social: as viagens de comboio tornar-se-iam tão prementes e consistentes que acabariam por fazer desaparecer as características singulares da cultura ou maneira de pensar dos povos que até então apenas se deslocavam a pé ou a cavalo ou de barco, num modo lento e em concordância com as regras naturais do clima e dos ciclos agrícolas e comerciais.
O comboio, e os demais inventos tecnológicos que começavam a surgir por todo o lado, vinha acelerar tudo. Ortigão de Sampaio, aqui no Norte, no seu jornal «Alvorada» conclamava que o progresso trazia consigo uma outra dimensão de velocidade que não dependia apenas dos jornais ou dos telégrafos, ou dos telefones ou dos comboios. Dizia ele que na sua região, ali naquele círculo limitado de Delães, Riba D’Ave, Famalicão, ainda não tinham chegado os artifícios do progresso e já no ar andavam todas as transformações de costumes e de modos de pensar tradicionais. Também Camilo Castelo Branco propusera, uns anos antes, mas por via do que se esperava que o comboio alcançasse para os povos, que os pilares da civilização assentavam no romance, na viabilidade e no fluido transmutativo. O que sejam as novidades que vêm pelos ares ou o que seja este fluido transmutativo que é fundamento da civilização é que nos aproxima das viroses, considerando que os agentes que as provocam não se vêm nem se calcula que existam até aparecerem e depois tudo condicionam e arrastam.
Pois bem, se considerarmos aquele tipo de práticas culturais que tomamos por tradicionais, como sejam, por exemplo, as romarias, as músicas do folclore, as práticas religiosas, a linguagem coloquial, as nomeadas e as toponímias, havemos de interrogar-nos sobre os vírus que as desestabilizam, que as corroem e alteram, que as obrigam a adaptações de todo o tipo. Vírus como o da curiosidade de saber onde está o grau de pureza ou de autenticidade de uma cantiga, onde está a identidade nacionalista ou local de um costume, onde assenta o princípio da normatividade de uma frase. Basta uma interrogação e a doença alastra. Mas se ficarmos pelo nível dessa instância de criação de sentido que são as culturas populares, os riscos e os medos associados às suas criações e à sua estabilidade de alcance fazem-nas andar numa corrida pela sua adaptabilidade, pela sua actualização: como saber da estabilidade de uma moda ou de uma tendência? Como saber da coerência do politicamente correcto? Como saber da verdade de uma opinião?
Como saber da actualidade de um repertório? Andando, se faz caminho e as decisões terão forçosamente de assumir os caminhos percorridos e a percorrer. Poderemos perguntar sempre: para onde vamos? Onde queremos chegar? A consistência das decisões radica na firmeza dos propósitos e nos conhecimentos reunidos. Esta pandemia traz-nos uma sugestão de caminho a fazer que é o de testarmos constantemente. Mas como estar, em cultura, se não cumprirmos, se não actuarmos, se não criarmos?
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