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Voz às Escolas
2024-06-19 às 06h00
Uma situação concreta de aplicação prática do ‘método’ de Paulo Freire aconteceu em São Tomé e Príncipe onde ele assessorou o programa de alfabetização, quando estava exilado em Genebra. Essa experiência é relatada num artigo que escreveu no livro «A Importância do Ato de Ler (em três artigos que se completam)» onde, logo no início, Freire alerta para o facto do assessor não ser “uma figura neutra, fria, descomprometida, disposta sempre a responder tecnicamente às solicitações que lhe sejam feitas”, mas ser, pelo contrário, um político, tal como a sua prática. Por outro lado, refere que a intervenção do assessor não deve ser de invasão, ainda que disfarçada. Em «Extensão e Comunicação?» Freire alerta para o facto da invasão cultural ser uma caraterística dos processos antidialógicos e pressupor relações autoritárias, de manipulação, de messianismo e atitudes de conquista. Tal significa que, nesse caso, o invasor procuraria impor os seus valores, a sua cultura, a sua história aos invadidos que, por sua vez, se encontrariam numa atitude passiva de escuta, não podendo fazer a sua ‘leitura’ do mundo. Pelo contrário, para ele tinha que haver concordância entre o assessor e o governo, no que se referia à relação entre a ‘leitura do contexto’ e a ‘leitura da palavra’ (que considerava indissociáveis), sendo este elo o ponto central de todo o trabalho que realizou em São Tomé e Príncipe na procura do “caminho para a libertação” da população. Em seguida, Freire refere-se à estrutura e à forma como foram construídos e organizados os materiais - Cadernos de Cultura Popular – quer para a fase de alfabetização, quer para a fase de pós-alfabetização. Em qualquer um dos textos era utilizada “uma linguagem simples, jamais simplista”, tratando-se temas variados relativos ao contexto do país. Freire considerou que “a linguagem dos textos era desafiadora e não sloganizadora”. Ora, para Freire, o slogan é um dos instrumentos utilizados pelo invasor para a domesticação e para a descaraterização da cultura de um povo.
Há também uma outra ideia neste artigo que nos surge frequentemente, que é a questão da neutralidade na/da educação. Freire salienta que nem a linguagem é neutra nem o são os cadernos nem os livros usados no processo de alfabetização. A neutralidade da educação é impossível porque o ser humano, o educador ou o educando, tem de optar, de decidir logo a educação é política. Freire assumiu que o que pretendeu o governo de São Tomé e Príncipe, e ele próprio, foi a emancipação, a libertação, a justiça social e a reconstrução do país, para que o povo compreendesse que tem de estar presente na História, refazendo-a e refazendo-se a si mesmo. Assim, a alfabetização e a pós-alfabetização, sendo atos políticos, atos de conhecimento e criadores são “de um lado, expressões da reconstrução nacional em marcha; de outro, práticas impulsionadoras da reconstrução”.
Neste programa de alfabetização, realizado no âmbito do IDAC (Instituto de Ação Cultural), com uma duração prevista de quatro anos, funcionaram 394 Círculos de Cultura, envolvendo 25 coordenadores do departamento de alfabetiz- ação, 704 animadores culturais e 14 mil alfabetizandos. Num destes Círculos de Cultura, Paulo Freire relatou um episódio que nos permite perceber a sua forma de funcionamento e os objetivos que se pretendiam alcançar. Tinha sido escolhida a palavra geradora bonito e uma situação existencial ligada à paisagem envolvente do local, juntamente com uma codificação da atividade predominante na região: a pesca.
Os educandos ao descreveram e dialogarem sobre a imagem (codificação) iam descobrindo pedaços do seu mundo (neste caso o Monte Mário) ’emergindo’ da realidade e possibilitando uma visão diferente do seu próprio mundo. Nesta fase de alfabetização, Paulo Freire considerava que o principal era o desenvolvimento da curiosidade das pessoas e só mais tarde, na pós-alfabetização, se pretendia uma compreensão crítica da sua situação no sentido de fomentar a participação do povo na reconstrução do país.
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