E a guerra continua...
Voz aos Escritores
2023-07-28 às 06h00
Procriar e propagar a espécie a que pertencemos parecem ser questões naturais, biológicas e instintivas. Contudo, nos países ditos desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento há cada vez mais indivíduos singulares ou casais, hétero ou homossexuais, que decidem não ter filhos. É uma opção livre e legítima que deve ser respeitada. Mas também há os que querem ser Pais e Mães e quando decidem ter filhos são confrontados com o abalo da incapacidade reprodutora. A Organização Mundial da Saúde estima que 15% a 20% da população em idade de procriação é infértil. Em Portugal, quinto país mais envelhecido do Mundo a seguir ao Japão, Itália, Grécia e Finlândia, existem cerca de 300 mil casais inférteis (1 em cada 6), e a taxa de fertilidade de 1,4 situa-se abaixo do valor 2,1, parâmetro imprescindível para que haja substituição de gerações. A ciência da fertilização evoluiu nas últimas décadas, com taxas de sucesso que rondam os 40%. Mas, por vezes, o sonho da maternidade e da paternidade é um percurso pejado de pedras, caminho doloroso que percorre planícies e escala montanhas, uma viagem que se inicia com o diagnóstico médico e cujo destino se desconhece. Essa incógnita, o navegar por mares bravos e revoltosos de breves acalmias sem saber se um dia se chega a porto-seguro, dificulta a travessia e leva alguns à compreensível desistência de uma gravidez. A infertilidade é o luto de um filho que não nasceu. Além dos incómodos físicos, da medicação de efeitos desconfortáveis e das invasões cirúrgicas, há a pressão familiar e social, os factores psicológicos e o turbilhão de emoções de quem opta por procurar ajuda para engravidar, seja pessoa singular ou um casal. A inoportuna culpa instala-se de malas e bagagens nos lares ansiosos por bebés, Sou infértil porque fiz isto, ou não fiz aquilo, a culpa a emparelhar a vitimização, Que mal fiz eu para merecer este castigo, porquê a mim, que desejo tanto um filho ao contrário de muitos que não os querem? Antes do diagnóstico, há uma lista de espera de um ano para os tratamentos da infertilidade no Serviço Nacional de Saúde. E o tempo, mormente para as Mulheres, é impiedoso, voa alheio ao relógio biológico e à lisura do ventre. A ciência da procriação medicamente assistida defende que a partir dos 36 anos a fertilidade da Mulher decresce acentuadamente, e a lei portuguesa só subsidia as Fecundações In Vitro nas Mulheres cuja idade seja inferior a 40 anos. Essa mesma lei somente permite e patrocina a realização de 3 tentativas de FIV. Se um casal ou uma Mulher as esgotou, ou não se compadece com o longo tempo de espera do Serviço Nacional de Saúde, terá de recorrer a clínicas privadas, cujos valores podem chegar aos 5 mil euros por cada intervenção. É irónico constatar que num país envelhecido como Portugal, nação de escassas ou nulas medidas de sanação deste gravíssimo problema social, se pratique esta política de fertilidade em contraposição com a da interrupção voluntária da gravidez. O aborto tem de ser célere. O número de abortos é de 210 por 1000 nados vivos, e a respectiva lei não prevê um limite de interrupções voluntárias da gravidez por Mulher. A desistência da procriação por motivos financeiros estende-se a uma considerável fasquia de pessoas em idade fértil. Os que embarcam nesta viagem tempestuosa, por vezes também desistem por outros motivos, ou interrompem o desgastante processo: a cada mês nasce a expectativa seguida do logro, a aspiração dissipada na negação, resmas de nãos, testes de gravidez negativos, sangues delatores da lisura do ventre, ecografias de úteros vazios após os martírios dos tratamentos, relações sexuais programadas, actos mecânicos que se despem do romantismo e do ardor da paixão, entrega focada num novo ser, um sonho que se almeja realizar, um sonho que escorre dos corpos como areia entre os dedos. Provações e sucessivas desilusões que unem casais e afastam outros. O silêncio instala-se, inquilino indesejado, como a culpa, que morde as entranhas e as almas. A frustração cresce num grito calado. As perguntas dos outros ferem, atam nós nas gargantas, derramam lágrimas escondidas, o pranto solitário é o mais sofrido, perguntas de quem lhes é próximo, sem maldade, mas as palavras espetam-se nos ventres lisos, árvore que não dá fruto corta-se pela raiz, desgosto de não dar netos aos pais, os seres que mais amam, amor maior só pelos filhos que tardam em chegar, olhares de soslaio sobre as barrigas proeminentes das abençoadas com a graça da maternidade, ventres prenhes de vida, a vergonhosa inveja a aflorar à mente e a apertar corações, a tristeza a afastá-los das grávidas, sem maldade, apenas por lástima. Mas a Esperança não morre e há associações como a Comunidade Vida Mais Fértil que dá a mão a quem tem dificuldade em engravidar, pessoas inspiradoras que aliviam as dores e rasgam os silêncios, quebram tabus, oferecem ferramentas e apoio neste penoso caminho tornando-o mais leve e equilibrado, proporcionam espaços de informação e partilha, um projecto que nasceu do sonho de duas amigas unidas pela própria experiência da infertilidade, Mulheres guerreiras que apontam a vida para além da lisura dos ventres, porque ser Mulher e ser Homem é muito mais do que ser Mãe e ser Pai, e os milagres acontecem quando menos esperamos.
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