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Umoja, Aldeia Sem Homens

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Umoja, Aldeia Sem Homens

Voz aos Escritores

2020-02-07 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

O meu nome é Jaha. Vivo há dois anos na aldeia Umoja no Norte do Quénia. Para aqui fugi quando a minha filha tinha dois meses e me senti capaz de andar ligeira, correr, caso me perseguissem, ainda que a dores me afligissem. Dores do corpo. Dores da alma. Trouxe a bebé agasalhada nos seios. Chama-se Faika, a minha bebé, a vitoriosa, assim a nomeei depois dum parto medonho, um dar à luz nas trevas, quase morri a dar vida, a minha menina quase morreu antes de viver. É tão pequenina, a minha menina. As mulheres vítimas da mutilação genital quase não comem nem bebem durante a prenhez, para que os bebés não cresçam demasiado nos seus ventres. Um bebé grande não passa pela vagina mutilada, a vagina pela mão do preconceito atrofiada, os tecidos cicatrizados dificultam a dilatação, nem sempre são possíveis as cesarianas. Mãe e filho lutam numa peleja injusta contra o rondar da morte. A morte é triunfadora. No meu caso, adiou a sentença. Sobrevivi. Faika também. É tão bonita, a minha menina. Por ela fugi. Faika não será vítima da mutilação genital. Faika não será como eu.

Tinha oito anos quando me mutilaram. Sinto as dores desse acto hediondo, a mulher velha de faca na mão, outra a prender-me os braços, outra a tapar-me a boca, outra a abrir-me as pernas, a mulher velha a acanhar as moedas na algibeira, a erguer a faca, a aninhar-se, a cortar-me, a gritar-me, a coser-me. Sinto as dores consequentes, o padecer a caminhar, a aninhar, a defecar, a copular, as infecções contínuas, os martírios permanentes, a ardência ao urinar por um pequeno orifício, as regras a morderem-me as entranhas, a bracejarem para se escoarem pelo buraco minúsculo, a toca da desonra, a loca da imundice. Menina honrada tem de ser mutilada, menina desejada tem de ser decepada, menina nupcial tem de ser cortada. O horror da noite de núpcias, o noivo escolhido pelos familiares a violentar-me, a alargar o orifício com uma faca afiada, outra faca afiada me rasgou no parto de Faika, outras mãos me coseram. As nossas vaginas são carnificinas.

Os familiares mutilam-nos para que possamos casar, mostrar a virtude ao noivo e à sua família, mutilam-nos para que o macho tenha mais prazer na cópula, para que se deleite na beleza duma vagina mutilada porque é feia a vagina intacta e o clitóris pode crescer, tomar as proporções de um pénis, mulheres-machos horroríficas, crenças absurdas, terríficas, mutilam-nos pelas ancestrais imposições da submissão da mulher ao homem, meninas forçadas a serem escravas, meras posses dos homens, como as cabras, mulheres destinadas a dar-lhes prazer sexual, o prazer a elas roubado, mulher íntegra não tem prazer, mulher honesta tem de calar, obedecer e suportar. A mutilação genital feminina é o culminar do poder do homem sobre a mulher. O homem que há séculos a domina por ter medo dela. O medo e a força bruta empoderam-no. O medo másculo espezinha a mulher, a robustez corpórea maltrata-a. As tradições religiosas e tribais são coniventes do medo e da violência. Engana-se quem pensa que a mutilação genital feminina é um assunto asiático e africano, engana-se quem pensa que é um assunto extemporâneo. Há no Mundo mais de duzentos milhões de vítimas da mutilação genital feminina. As migrações dos povos levam o flagelo a todos os continentes. Mesmo por lei proibida, continua a ser praticada em dezenas de países e raros são os casos de condenação judicial. As vítimas têm medo, sofrem em silêncio para protegerem os familiares, por pudor da intimidade expor.

Faika não sofrerá. Aqui, em Umoja, estamos a salvo das barbáries dos homens. Rebecca Lolosoli, a nossa matriarca, fundou a aldeia há trinta anos. Rebecca foi violada por um grupo de homens. O marido, que presenciou a violação, não a defendeu, o marido acobardado tomou as dores de macho encornado. Rebecca deixou-o. Da sua tenacidade nasceu Umoja, que significa união. Somos uma comunidade onde impera o respeito e a paz, uma família que acolhe as meninas e as mulheres violadas, humilhadas, agredidas, mutiladas, meninas e mulheres que fogem dos casamentos arranjados, dos noivos com idade para serem seus avós numa consentida pedofilia, fogem da poligamia, dos destinos malogrados, meninas e mulheres que escapam às garras e às mandíbulas dos machos atiçados. Somos independentes, ganhamos o nosso sustento com a venda aos turistas das bugigangas por nós elaboradas, peças coloridas muito apreciadas, criamos animais, cultivamos a terra, construímos as casas, temos a nossa escola, onde meninos e meninas aprendem línguas, aritmética, história e geografia, onde meninos e meninas aprendem a respeitarem-se, onde meninos e meninas aprendem que o homem não é superior à mulher nem a mulher é superior ao homem. Os rapazes podem permanecer na aldeia até completarem dezoito anos. Depois, tem de sair. Umoja é uma aldeia sem homens. Pelas noites, algumas procuram companhia masculina nas aldeias vizinhas. Sentem o apelo da maternidade. Pelas manhãs, regressam. Os filhos são criados por todas. Quando o Sol adormece, sentadas em torno da fogueira, planeamos tarefas, partilhamos estórias, o dia-a-dia, os fantasmas do passado que teimam em assombrar-nos, as dores, as angústias, os medos. Amparamo-nos. Também cantamos. Também rimos.

O choro e o riso contagiam. Vertemos lágrimas de dor ou de alegria. Os rios dos olhos confluem num único caudal. Somos irmãs do coração. Basma esconde o sorriso na mão, um sorriso amputado de dentes pelo marido. Dabiku segura o braço inerte, um braço invalidado pelo pai. Afarfa ajoelha-se, as mazelas da mutilação genital impedem-na de se sentar. E eu, Jaha, nome que para o povo Samburu significa dignidade, pergunto-me: quando chegará o dia em que o Mundo seja digno de receber as mulheres? Afago a carita de Faika e sussurro-lhe: serás vitoriosa, minha filha.

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