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Ideias
2018-09-24 às 06h00
“A filosofia não é ciência e está fadada a desaparecer”. É assim que António Coutinho sintetiza o seu ponto de vista, na entrevista que concedeu há uns meses à Folha de São Paulo (06.06.2018). António Coutinho é médico imunologista. E atualmente dirige o Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. Coordenou, durante o Governo de Passos Coelho, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, um órgão consultivo, de cientistas, que teve como missão aconselhar o Governo em matérias transversais de ciência e tecnologia. Na altura, era preocupação do Primeiro-Ministro estabelecer um plano de ajustamento para a Ciência. E explicou-o à Agência Lusa (09.11.2011), nos seguintes termos: iria fazer alterações ao modelo de financiamento das unidades de investigação, concentrando os apoios financeiros “onde são cientificamente mais rentáveis”. A consequência imediata foi a de que as Ciências Sociais e Humanas passaram a ser financiadas a 15% do total do financiamento público para a Ciência, e não a 22%, como até então.
Refletindo especificamente sobre o método científico, António Coutinho diz o seguinte à Folha de São Paulo: “… a singularidade está totalmente baseada na racionalidade (…). Em geral, a humanidade tentou de forma predominante perceber as coisas ou pela mágica, ou pela religião”. E embora o objetivo da filosofia seja o mesmo que o da ciência, “explicar o mundo e a nós próprios”, a filosofia “nunca progride”, porque “nós temos um bom processo e eles não têm”. Em conclusão, “O que é o objetivo da filosofia vai ser resolvido pela ciência, e a filosofia vai passar à história”.
Vasto programa! Embora, deva acrescentar que fazer da ciência uma crença absoluta e do positivismo uma religião, não constitui, passe o paradoxo, pequena metafísica.
A origem desta metafísica não está, todavia, em António Coutinho. Data, antes, das primeiras décadas do século XIX. Foi em 1830 que Augusto Comte estabeleceu, no Curso de Filosofia Positiva, uma religião positivista. E para que não houvesse dúvidas de que se tratava de uma religião, chamou-lhe Religião da Humanidade e dotou-a mesmo, em 1854, de um Catecismo Positivista. É no Curso de Filosofia Positiva que deparámos com a lei dos três estados. Explica Comte: “o espírito humano emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações, três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida, o método metafísico, e finalmente, o método positivo. A lei dos três estados conduzirá, na visão de Comte, ao advento da Era Normal, onde a humanidade alcançará o estádio evolutivo final (estádio positivo), caracterizado pelo predomínio da Religião da Humanidade.
Como consequência desta religião da ciência e da tecnologia e da sua racionalidade soberana, que pretende fazer passar à história a filosofia, há muito que a Universidade, onde estão instalados os principais laboratórios de investigação, vai deixando de ter pensamento, para apenas compreender números. Gerida como uma empresa, a Universidade passou a estar por conta da tecnologia, a ponto de parecer, hoje, que não há mais mundo de desempenho académico que necessidades de mercado, injunções financeiras, rankings de respeitabilidade e visibilidade mediática, e também agências de rating, que estabelecem o critério da produção científica.
Entretanto, em finais de 2013 (22 de novembro), numa entrevista ao jornal Público, Manuel Sobrinho Simões, médico e cientista de anatomia patológica, criador e diretor do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular e Celular da Universidade do Porto (IPATIMUP), sintetizou assim a sua análise da política científica, que era então levada a cabo pelo Governo de Passos Coelho: “Este Governo fez uma espécie de destruição criativa: rebentou com tudo”.
E sobre os critérios de avaliação da ciência, baseados na produtividade científica, considerou-os “terríveis”, antes de mais nada, por colocar os investigadores das Ciências Sociais e Humanas numa “situação de dificuldade”, quando “a sociedade portuguesa precisa, como de pão para a boca, de Ciências Sociais”.
Mas sobretudo, entende Sobrinho Simões que é mais importante a repercussão da atividade de investigação “no mundo científico e na sociedade do que o facto de se publicar numa revista com muito impacto”.
Por outro lado, sobre a ideologia empresarial e comercial aplicada à investigação, vem agora Sobrinho Simões dizer o seguinte à Revista do semanário Expresso (25.08.2018): “O empreendedorismo é criminoso, porque tem estimulado perversões. O cientista que é muito empreendedor deve ser um empresário. Os estímulos deste tipo podem acabar por ser um convite ao chico-espertismo”.
Reconhece, no entanto, Sobrinho Simões que “sempre fui um performer”: “Descrevo-me pelo output, o mensurável”. Embora isso não chegue, “a definição do que sou é cada vez mais cultural”; “religiões, cultura, costumes, definem-nos mais do que os genes”. “Não consigo explicar coisas como o gosto pela música”. Com efeito, “Tudo o que é psicológico e sociológico escapa-me, não o domino, dominando o resto [o biológico]”.
A ideia de Sobrinho Simões é a de que o avanço científico está, antes de mais nada, em “fazer uma determinada pergunta” (22.11.2013), razão pela qual “um investigador genial” é precisamente aquele que “faz uma excelente pergunta”. Já a ideia de António Coutinho é completamente outra, não existe ciência na pergunta, mas na resposta, e melhor ainda, numa resposta progressiva, mas única, porque, como assinala, a singularidade radica apenas na racionalidade, no biológico, e não no cultural.
Compreende-se, pois, que para António Coutinho, as religiões, os costumes, a cultura, e enfim, a filosofia, sejam apenas empecilhos no caminho e más respostas na explicação do humano. É por não poderem ser outra coisa que devem passar à história.
E é claro que num mundo assim, um mundo raso, sem história e sem pensamento, assente na exclusiva racionalidade de uma ciência e tecnologia positivistas, as Ciências Sociais e Humanas não têm outra saída que não seja passarem também elas à história
10 Dezembro 2023
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