‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações
Voz aos Escritores
2021-12-17 às 06h00
Ovento uivava sobre as nossas cabeças, um vento gélido que nos encutinhava, corpos encolhidos na lama das trincheiras, uma lama pestilenta que se entranhava nas fardas, na carne, na alma, se intrometia no calçado, os pés sempre encharcados, as mãos, os rostos enregelados. A chuva dera-nos tréguas por umas horas, mas empapara as trincheiras, deixando no seu encalço uma massa de terra e de trampa que nos chegava aos joelhos. As trincheiras eram a imundice, um abrigo bélico onde os homens lutavam pela vida, lá comiam, lá dormiam, lá defecavam, lá conviviam. Os jornais valiam ouro, não tanto pelas notícias que relatavam, os meandros da guerra em recuos e avanços neles narrados, a vida no Mundo ali contada longe das entranhas da guerra e da terra onde nos anilhávamos. Os jornais valiam ouro por que com as suas páginas forrávamos os nossos troncos, os nossos braços, as nossas pernas e assim minorávamos o morder do frio, um frio mais difícil de suportar do que a fome. Fome e frio, frio e fome, dupla de exasperação, a sopa rala chegava às trincheiras já fria, o conteúdo dos enlatados congelava nas noites invernais, a cevada aguada oferecia escassa consolação, cevada aquecida quando lográvamos atiçar uma fogueira esmorecida pela humidade das trincheiras, o calor das chamas e a quentura da bebida por instantes acalentavam-nos os espíritos inquietos, os dedos entorpecidos, as goelas ardidas de tanto frio tragar, de tanta saliva de míngua emborcar, a saliva seca de quem engole o apoquento. A guerra é o inferno na Terra, a guerra é o imortal tormento. O Homem não vive sem guerra, jovens que não envelhecem lutam por que são obrigados, perdem a vida, os membros, a visão, a audição pelos mandos superiores, jovens forçados por quem está no poder, o poder a assassiná-los, carne para canhão, viessem os superiores para as trincheiras e logo mudariam de posição, sim à paz, não à guerra. Nas trincheiras morria-se também de doença, os corpos saudáveis depressa adoeciam, os pés apodreciam, os piolhos comiam-nos, os gases enlouqueciam-nos, atrofiavam-nos os pulmões, Senhor, Deus meu, quantas aflições. Nas trincheiras a Morte era movediça vizinha, chafurdava na trampa e empanturrava-se de carne tenra. Alguns soldados, desesperados, bebiam petróleo para ficarem doentes, queriam sair daqueles buracos, convalescer nas enfermarias improvisadas atulhadas de agoniados enfermos e de estropiados, queriam salvar-se da guerra, voltar para casa, abraçar os seus, viver os muitos anos que esperançavam até serem velhinhos e deste Mundo partirem numa Morte santa. Quando eram apanhados no embuste da doença por eles provocada, condenavam-nos à morte, por ordens superiores fuzilavam-nos como traidores, o mesmo acontecia com os capturados desertores. Muitos soldados não suportavam a ideia dessa condenação, a sentença de traição e cobardia, nem aguentavam a vida nas trincheiras. O desespero da guerra atirava-os para a Terra de Ninguém, onde tombavam, trespassados pelas balas do inimigo que se resguardava noutra trincheira a duzentos metros da nossa. A zona que mediava estas trincheiras chamava-se Terra de Ninguém, um território onde jaziam os que se atreviam a pisá-lo empurrados pelo suicídio ou pelos mandos homicidas dos superiores dos exércitos. Na Terra de Ninguém os corpos caídos apodreciam. O vento arrastava o fedor da carne em decomposição que o frio não preservava, a carne que era um festim para as ratazanas grandes como gatos, terrível avistar os nossos camaradas a serem tragados por esse bicharocos nojentos, oxalá pudéssemos matá-los a tiro, mas não podíamos, as ordens superiores não autorizavam o esbanjar de munições na rataria, quanta ironia, Senhor, Deus meu, o capitão a ordenar, Balas e obuses são para eliminar homens, entendido, Sim, meu capitão, ele a acrescentar, Toca a ir em frente e matar o inimigo que se faz tarde, Tarde para quê, meu capitão, para morrer, para matar, para quê morrer, para quê matar, inimigo por quê, perguntava-me na minha imensa e impotente angústia diante de tantas vidas desperdiçadas.
O vento uivava sobre as nossas cabeças, um vento que soprava uma melodia, Noite Feliz, noite feliz, Ó Senhor, Deus de amor; Stilla Nacht, Heilige nacht, Alles schlaft, Einsan wacht; Silent night, Holly night, All is calm, All is bright; Douce nuit, Sainte nuit, Dans le cieux, L´astre luit, o dom da música derrubava a Torre de Babel, o Natal desmoronava fronteiras e enterrava as trincheiras, os soldados elevavam-se ao som dos cânticos, vozes que matavam a guerra e cantavam a paz, a tristeza na coexistência da alegria, vozes que nos guiavam para a Terra de Ninguém e nessa terra nos abraçámos, naquelas horas não existiram inimigos, nem países, nem conflitos, naquelas horas trocaram-se pequenos presentes, chocolates, cigarros, amuletos, mostraram-se fotografias de noivas, de Mães, de filhos, de famílias, celebrámos o Natal no silêncio das armas, nos apertos de mãos, nos sorrisos momentâneos, nas lágrimas de dor e de esperança. Ali éramos todos iguais, meros mortais de carne e osso sem nacionalidades, sem posições antagónicas, sem lados bélicos. Ali inumamos os mortos sem distinguirmos uniformes, ofertando-lhes a dignidade de uma sepultura. A magia do Natal evolou a carnificina da guerra, uma magia efémera, talvez por isso tão sentida.
Os soldados de ambas as facções regressaram às respectivas trincheiras e à guerra, a maldita guerra que persiste no Mundo, a sempiterna luta baptizada com outros nomes, a luta do perpétuo luto e a cada ano a breve paz do Natal.
04 Outubro 2024
27 Setembro 2024
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