Para reflexão...
Voz aos Escritores
2022-05-27 às 06h00
Há títulos que nos seduzem e que gostaríamos de ter criado. Quando leio «A harpa do crente», de Alexandre Herculano, chamo a mim os sons de um instrumento flébil, perfeitamente adequados à minha relação com a natureza e, por confluência metafísica, com o Deus em que acredito. Se eu tocasse um instrumento, talvez escolhesse por isso a harpa e o fizesse à tarde, antes do pôr do sol, momento crucial da contemplação mística. E, como Herculano, louvaria o Eterno nas horas de silêncio, prolongando-as pela noite fora. Não é fácil compreender, considerada a austeridade do autor de «Eurico, o presbítero», como filosofia, moral e religião são arrancadas da natureza e postas ao serviço da poesia. «A harpa do crente» é um hino a Deus e à liberdade do poeta, que nunca se deixará corromper pelo dinheiro e pelo opressor.
Tenho pelos sons advenientes de cordas beliscadas ou percutidas uma admiração particular, sendo talvez por isso que, embora não os tocando, os ouço com elevado enlevo. Ouço extasiado a guitarra de Carlos Paredes, os violinos de Lei Cheng, Paganini ou Vivaldi, as músicas populares ou eruditas com sons de arco e lira. Há muitos anos, fui atraído pelo título de um livro do grande poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz, «El arco y la lira», a propósito de uns estudos sobre teoria literária. Pude então refletir sobre a origem e a natureza da poesia, e confirmar de que forma esta se confunde com a música. Quando escrevo um poema, faço-o sempre sobre um fundo musical, que ouço, recordo ou imagino, vertido depois nas múltiplas musicalidades dos próprios versos. Miscigenar em substância e forma temas fundamentais da nossa vida, como o amor, a guerra ou a morte, e fazê-lo com sons aflitivos de bombas ou de águas serenas a correr não é tarefa fácil, requerendo a sensibilidade dos olhos fechados e dos sentidos em ebulição. O arco e a lira simbolizam as possibilidades sonoras do poema e da essência poética. Octávio Paz sabia disso, escolheu o título e eu apaixonei-me pelas suas lições.
O violino é para mim um instrumento real e simbólico de valor inescapável. Do mito do gato violinista a «Um violinista no telhado», que vi em realização do canadiano Norman Jewison, as referências, diretas ou indiretas, a este instrumento tão particular, transportam-me para as regiões míticas do meu pensamento, tão preenchidas de notações antropológicas. Quando li «O mito do eterno retorno», de Mircea Eliade, pude aperceber-me da importância da noção de «passado» na nossa conceção do que é perfeito, benéfico ou bondoso.
Ao ver «Um violinista no telhado», a ficção de uma aldeia russa, czarista e cinzenta, a forma de convivência entre judeus e cristãos, o abandono forçado, o exílio e a dispersão, a força mágica das tradições no comportamento social, pude compreender por que razão um título pode mobilizar em nós as cordas mais relevantes da nossa sensibilidade. Na verdade, que faríamos sem o suporte cultural das nossas tradições se é nelas que vive a noção mais completa do que é a perfeição? Sem elas, diz a personagem Tevye, a nossa vida seria como um violino no telhado, completamente instável, absurdamente fugidia e incompleta.
Quando escrevi «Sete traços na parede nua», tive bem presente a ideia das cordas como possibilidade narrativa simbólica, como linhas mobilizadoras de histórias e de representações.
A realidade pode figurar-se de múltiplas e complexas formas, seja na fotografia, na pintura, ou na pirogravura; pode ainda sê-lo na música popular mais simples, ou na sinfonia mais elaborada. Sugerir que, a partir de sete traços existentes numa parede branca e nua, é possível ficcionar sete histórias, aleatórias ou não, e nelas explicar toda a complexidade humana, significa atribuir à realidade, à linguagem e à imaginação todos os poderes que lhes são intrínsecos. Os títulos são a síntese simbólica. Por isso lhes atribuo tanta importância.
23 Junho 2022
17 Junho 2022
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