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Terra do Medo

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

Voz aos Escritores

2019-02-22 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Tinha doze anos. Ele chamava-me princesa. Dava-me roupa, flores, chocolates, perfumes. Prometeu-me o Mundo. Com ele parti da casa onde me maltratavam. O mundo prometido revelou-se um lugar pervertido, horroroso, malcheiroso. Atendia 10 homens por dia, depois 20, depois 30. Abria as pernas, a boca, fechava os olhos, tapava os ouvidos, fingia não estar ali, na Terra do Medo. Sem espanto, os homens riam-se do meu pranto. Usavam-me e largavam-me, princesa de pele e osso ultrajada, princesa em catre de prisioneira tombada, por ele explorada. De outros quartos o lamurio de outras princesas penetrava o meu tugúrio. A Terra do Medo era um acanhado murmúrio. A Terra do Medo aumentou quando o meu ventre arredondou. Contei o tempo, contei os homens, nove meses de homens, nove meses de sémenes, nove meses de devastação.
O meu filho fora semeado na Terra do Medo. O que sentiria o ser que dentro de mim crescia, que comigo padecia? Que futuro, o pobre, teria?
Saiu de mim no catre de condenada. Não pude fazer nada. A parteira levou-o junto ao peito, um abraço roubado, um seio furtado, um colo esventrado, um choro jamais calado. Ele batia, ameaçava, foge e nunca saberás do teu filho, chiba e nunca o verás, vai-te e serás uma cadela vadia, bicha que não conhece o dono, estropício de rua ao Deus dará, ninguém em ti acreditará.
Na Terra do Medo não há flores, nem amores, nem perfumados odores.
Na Terra do Medo crescem pavores e secam destemores.
Sou estrangeiro. Cheguei há catorze anos. Vim para trabalhar, ganhar a vida, enviar dinheiro à família. Os primeiros meses correram bem. Depois, fiquei desempregado de bolsos vazios e coração amargurado. A Terra Natal, a mulher e a filha esqueceram-se de mim. Fiz-me um sem abrigo: Invernos em casas abandonadas, Verões sob pontes arejadas, vitualhas catadas ao relento tragadas. Um homem abeirou-se numa manhã enregelada. Era bem apessoado, a Cruz de Cristo pendia-lhe num fio dourado. Ofereceu-me trabalho. Prometeu-me colchão. Acenou-me pão. Levou-me para a Terra do Medo. Tirou-me os documentos. Na Terra do Medo laborava horas sem fim, dias sem fim, semanas sem fim. Laborava nas terras, feiras e mercados a carregar fardos. Na Terra do Medo plantam-se calos na mão, sulcos no corpo, cardos de humilhação. Dormia num carro empancado, banhava-me de mangueira, comia os restos do meu triste fado e do bem apessoado. Sobrevivia na prisão do medo. Acabrunhado, não via o outro lado. Quando nos tratam como escravos, esquecemo-nos de que somos gente. Muitos testemunharam o meu martírio. Nenhum o denunciou. O bem apessoado obrigava-me a acompanhá-lo à missa. O bem apessoado pousava vinte euros na cesta das esmolas. O bem apessoado gastava as obrigações religiosas nas eucaristias dominicais e nos peregrinos a caminho dos santuários. Assim saldava os pecados. A mim nunca me deu um cêntimo.
Na Terra do Medo não há pagamentos, nem agradecimentos.
Na Terra do Medo excedem espancamentos.
Era uma mulher alta, imponente. Panos de seda vestiam-lhe o corpo esguio. As mãos cuidadas levavam a seda de encontro ao rosto matreiro, ao rosto mercenário. Mostrava-o quando lhe era oportuno. Mostrou-o à minha mãe com aprumo. A boca rubra prometeu-lhe a minha protecção, o envio do soldo que eu ganharia, o pão não faltaria. Outros rapazes me acompanhariam, disse, apontando a carrinha de vários lugares, encenando a veracidade dos seus dizeres. Seis rapazes lá estavam. Teriam a minha idade, catorze, quinze anos. Aguardavam. As lágrimas da minha mãe benzeram a despedida. A miséria ditou a partida.
Passámos a fronteira. A mulher untou as mãos dos guardas. Entrámos na Terra do Medo. Despejaram-nos num barracão. As portas blindadas trancaram-se atrás de nós. Macas, luzes, instrumentos raros, estranhos. Cheiro a suor. Cheiro a desinfectante. Cheiro a medo. Um trapo na minha boca. Quando despertei, a dor era insuportável, a dor rasgava-me as costas, a dor ofuscava-me os sentidos. Os meus companheiros de viagem em sacos pretos amortalhados. Órgãos ensanguentados manuseados por homens de branco tingidos de vermelho. Cheiro a medo. Cheiro a sangue. Cheiro a morte.
Na Terra do Medo somos um pedaço de carne.
Na Terra do Medo, quanto vale a vida humana?

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