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“Tempos que se repetem”

Ettore Scola e a ferrovia portuguesa

“Tempos que se repetem”

Escreve quem sabe

2018-12-24 às 06h00

Álvaro Moreira da Silva Álvaro Moreira da Silva

Outrora o Natal era assim, simples e modesto. Desde o raiar da aurora até ao anoitecer, apressávamo-nos a finalizar os preparativos. O discurso da avó repetia-se em época natalícia: “Toma lá uma moeda, pingão, mas não digas nada aos teus pais!”, reforçando sempre a ideia de que aqueles vinte e cinco escudos teriam de ser gastos em comida, nunca em maus vícios. «Pingão» era todo o neto que hesitava em aceitar a pequena oferta da avó. Sinto que o fazíamos talvez por reconhecer o seu esforço de conquista: aquela moeda continha suor e lágrimas, e ela ficaria muito triste se não a aceitássemos.

Tal como em muitas outras casas e famílias, o dia de Natal era na casa dos avós. A casa enchia-se de gente alegre e quase sempre faltava uma ou outra cadeira, ausência perfeitamente colmatada com um banco improvisado sobre uma das camas anexas à sala de jantar. O pinheiro vestia-se de agulhas verdadeiras e, ano após ano, o presépio mantinha-se vivo, com a manjedoura e o menino Jesus descansando junto do sofá. O bacalhau e o polvo cozido eram os pratos trazidos à mesa, enquanto que o pão de ló, as rabanadas, a aletria e os mexidos caseiros coloriam as prateleiras. O bolo rei também listava no cardápio, mas nunca foi doce muito apreciado, embora a fava e o brinde metálico motivassem repetidas risadas. Lá em casa, queimavam-se as poucas pinhas apanhadas a custo no monte e distribuíam-se por todos os pinhões partidos, na varanda, à martelada. No fim alegre da noite, o Pai Natal batia misteriosamente à porta, e assim se encerrava a noite de Natal, plena de presentes e de magia.

Tempos novos chegaram. Hoje, o dia é de chuva e, pela estreita frincha daquela janela, a noite cai, o frio espreita, teimando gelar o calor das paredes cinzentas, praticamente despidas. Decido, finalmente, acender a lareira, aproveitando as acendalhas e a lenha que resta do passado ano. Estendo-me no sofá. A televisão está ligada, e nestes raros momentos de silêncio e tranquilidade, aproveito para tentar sossegar a mente e carregar as baterias para a semana que aí vem. Por breves instantes, sou absorvido pela projeção sucessiva de informação publicitária, repleta de promoções e engodos comerciais, aproveitando a azáfama mobilizada pelas compras da época natalícia.
Hoje sinto-me cansado. Desligo a televisão e, subitamente, caio num sono profundo. Vislumbro Nietzsche e revejo-me nele, no eterno retorno. Estabeleço no sonho um comparativo entre a modesta oferta da nossa avó, a simples moeda de vinte e cinco escudos, e a realidade meândrica atual.
Se outrora o sentimento de presentear alguém era perfeitamente demontrativo de um inegável amor e gratidão pelo próximo, sinto hoje, infelizmente, que já não o é em muitas circunstâncias. Creio mesmo, aliás, que se encontra culturalmente banalizado o ato de oferecer a alguém um presente de Natal. Para muitos será, atrevo-me a dizer, uma obrigação destituída de qualquer valor sentimental profundo. Algo que foi outrora puro, genuíno e bem mais modesto, parece-me, hoje, reflexo de uma sociedade que inevitavelmente sucumbe perante máquinas e estratégias comerciais insaciáveis.

Não acredito que o Natal de outrora fosse melhor, porque o ciclo natalício se repete como areia em ampulheta, com os mesmos cânticos, as mesmas lágrimas, risos e renovação familiar. Apenas admito sinceramente que a união das nossas famílias, o facto de termos sido ocasionalmente classificados de “pingões” ou até de termos dado boas risadas com a fava do bolo rei, são as razões que me levam a acreditar na constância dos verdadeiros valores do Natal. Estes valores nunca se basearão no consumismo exacerbado, mas estarão sempre presentes no gesto de quem nos ama e que nós amamos com a mesma intensidade.

*Com JMS

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