Ettore Scola e a ferrovia portuguesa
Escreve quem sabe
2018-10-15 às 06h00
No âmbito lato da canonicidade, da identificação e explicitação de regras, a taxonomização de produtos assume uma importância vital na organização retalhista. Porque os produtos se identificam pela sua denominação e pela sua integração em escalas hiperonímicas, encontra-se relevada a importância do conhecimento linguístico, dos significantes e dos significados, das denotações e, até, sob pena de eventual engodo, de algumas conotações. As vendas a retalho não se baseiam apenas em números e a ocorrência de casos relacionados com a palavra, com ambiguidades envolventes, com o seu deficiente enquadramento na escala taxonómica, sugere a necessidade de uma maior aferição linguística.
Comecemos com um exemplo. Pensemos na palavra «fruto» e imaginemos todas as possibilidades hiponímicas. Em primeiro lugar, o que é um «fruto»? Por definição dicionarística (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), é um órgão formado pela maturação de um ou mais ovários e que geralmente tem sementes; é ainda uma estrutura fértil dos vegetais que não se reproduzem por sementes. De modo simples, para que haja fruto, é necessário que haja flor. Com base nestas definições científicas, fruto é a maçã, a pera, o marmelo e equivalentes. Partindo das mesmas definições, serão frutos o ananás, o morango, a amora, a framboesa, a própria banana? E o figo? Os primeiros não são frutos, mas propriamente infrutescências. O fruto resulta da fecundação das flores. A infrutescência, por seu lado, resulta da fecundação de flores de uma inflorescência. A framboesa é um “fruto agregado”, originada de uma única flor, cujo ovário é formado por diversos carpelos livres ou ligeiramente aderidos entre si. O figo, por sua vez, pode constituir uma inflorescência se possuir somente flores e uma infrutescência se as flores forem fertilizadas e se transformarem em pequenos aquénios, frutos, que contêm a semente. Como se vê, na usual cadeia hierárquica hiperónimo-hipónimo de «fruto» cabem produtos com características diversas.
Se à denominação científica, biológica, «fruto» acrescentarmos a denominação «fruta», definição nada botânica mas geral, somamos dificuldades a outras já existentes. Em primeiro lugar, dificuldades de ordem estritamente linguística. Com efeito, «fruta» não é o feminino de «fruto». Depois, porque nem toda a fruta é um fruto e o contrário também acontece. O tomate, por exemplo, desenvolvendo-se a partir do ovário da flor, é um fruto verdadeiro, mas não é sentido popularmente como tal. O mesmo para a beringela, o pepino ou o pimento. E que dizer dos «frutos secos» como a amêndoa, o caju, a avelã, o amendoim, a noz, os pistácios e outros equivalentes? O caju, por exemplo, é um pseudofruto, um pedúnculo. O fruto é a castanha. O amendoim é um grão produzido subterraneamente em vagem de leguminosa. Já agora, pensemos no legume. O que é um legume? Por definição geral, legume é o fruto ou a semente de diferentes espécies de plantas, principalmente das leguminosas, utilizados como alimentos. Já se imaginou o âmbito desta definição e as consequências para uma correta taxonomização.
O trabalho classificatório na corrente retalhística não se afigura, portanto, fácil, e algumas consequências são, a nosso ver, negligenciadas. A figura do aferidor linguístico releva-se como muito importante e necessária. No livro “A língua move-se” (Calígrafo, 2017), do meu pai, problematiza-se o conceito de «cereal» e narra-se um acontecimento absurdo, mas real. Em primeiro lugar, o que é um cereal? São cereais o arroz, o milho ou o trigo? É evidente que todos confirmaremos que sim. Que acontecerá, no entanto, em casos de mobilidade semântica, ou de formatações intelectuais inconsequentes? Se para empregados de um hipermercado, o arroz não é um cereal, e se «cereais» são as caixas amontoadas nas prateleiras, tem-se então um problema metalinguístico que pode destruir valor. Uma grande empresa de retalho não pode falhar na taxonomização dos produtos que vende, nem autorizar a ignorância dos seus trabalhadores. A aferição linguística das classificações em uso é extremamente importante e deve ser objeto de ponderação. A figura do linguista, do especialista em cadeias taxonómicas próprias do retalho, é fundamental.
* Com JMS
10 Outubro 2024
08 Outubro 2024
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