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Tarrafal, Terra do Mal

E a guerra continua...

Tarrafal, Terra do Mal

Voz aos Escritores

2019-04-26 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Vinte e cinco de Abril. O claudicar, achaque da velhice, mazela dum espancamento, não me impede de ir ao cemitério do Alto de São João. Faço-o todos os anos, nesta data, quando os portugueses foram libertados pela Revolução dos Cravos, o dia mais valioso da minha vasta existência. Apoiado no cajado, contemplo o Mausoléu das Vítimas do Tarrafal, meus companheiros no degredo, parceiros na tortura e no medo, ossadas transladadas para Portugal. Ossos que a terra árida da ilha não aniquilou. Vestígios indigestos da morte lenta, da morte violenta, da morte poeirenta. Fico quieto. Apenas ouço o vento. Apenas ouço o mar. O cair das lágrimas é silencioso, calado como o meu penar. As lágrimas sabem ao sal da ilha, ao azar do além-mar, sal e azar, cuja junção dita Salazar. Releio o epitáfio devagar:
“Aos que na longa noite do fascismo foram portadores da chama da liberdade e pela liberdade morreram no campo de concentração do Tarrafal”.
Eternas eram as noites. Infindos os dias. A morte omnipresente. Um rastejar pelo tempo incoerente. O director a dizer, Quem vem para o Tarrafal, vem para morrer. O médico a bradar, Não estou aqui para curar, mas para certidões de óbito assinar. Como o Apóstolo Santiago que dá nome à ilha, fomos uns mártires, não do Cristianismo, mas do maldito fascismo. Como Santiago vertemos o sangue, que de vermelho tingiu esse pedaço do arquipélago Cabo-verdiano, cercados pela prisão do oceano. Verde e vermelho, as cores da bandeira do nosso Portugal. Por ele sofremos no Tarrafal. Por ele combatemos o regime ditatorial.
Fomos enviados para a colónia penal em regime preventivo, sem acusação, nem julgamento, nada era legal. Homens que não mataram, não violaram, não roubaram, prisioneiros que na liberdade acreditaram. Fomos mandados para o inferno, para a Terra do Mal. Terra tórrida, quase desértica, região desoladora, de desânimo provocadora. Terra que verga os corpos e mingua os espíritos, a par das provações, das humilhações, das devastações.
Éramos aves de voos coarctados, pelos arames farpados engaiolados, pássaros sedentos, esfaimados, pelos carcereiros depenados, pelos guardas subjugados, vigias alertas sempre armados. Corpos que definhavam. Corpos que inchavam. Esqueletos andrajosos. Cabelos piolhentos. Seres fedegosos. Trinta dias sem nos banharmos, em latas a defecarmos, sem nada para nos limparmos. Os guardas usavam tiras de jornal quando se aliviavam, notícias que passaram na censura a aguardarem outra desmesura, retalhos que roubávamos para nos informarmos, porque do mundo apartados estávamos.
Trabalhos forçados, insalubridade, espancamentos, roupas esfarrapadas, braços partidos, pernas quebradas para sempre às bengalas obrigadas. Um guarda sovou um preso com uma peúga atulhada de areia molhada. O homem sangrava. O homem misericórdia suplicava. O guarda brutalizava. Preso de dentes partidos. Preso cego dum olho, a enxergar o mundo pela metade, a sofrer o dobro da desumanidade. Outros presos obrigados a permanecer de pé por três dias, braços erguidos, mãos nas nucas, sem comer, sem beber, sem dormir, desancados se caíam prostrados, por biqueiras chutados, por puxões levantados, por vergastas chagados.
A alimentação não tinha variação, parca, mal amanhada, empapada. Sustento escasso, deteriorado, tragado de nariz tapado. Púnhamos bolas de pão nas narinas, a servirem de tampão, a obstarem a pestilência da ração. Os olhos da fome do asco se evadiam. As mãos da fome os bichos do prato sacudiam. As bocas da fome a nada se inibiam.
A fragilidade dos corpos aliciava as doenças. Rareava a medicação. Rondavam-nos a malária, o beribéri, o escorbuto, a xeroftalmia, o paludismo, a tuberculose, a biliosa. Quando algum deixava de urinar, dizia, Tenho passaporte para a morte. Passados dias morria. Campo de morte lenta. Campo fértil de aniquilamento moral, próspero de abatimento físico, de perecer paulatino, fatal como o nosso destino.
Três de nós tentámos a fuga. Na Serra Malagueta fomos capturados. De volta ao campo fomos açoitados. Enfiaram-nos na “frigideira”, uma cela isolada, tecto de cimento armado, paredes baixas, um forno cuja temperatura era insuportável. Três dias sem beber. Setenta dias aprisionados. Comíamos em dias alternados. Saímos magros, emporcalhados, desgrenhados, pela luz do dia ofuscados, os vincos do martírio nos rostos encovados. Perdi vinte quilos. Vomitava sangue. A morte vai levar-me, pensei. Enganei-me. Sobrevivi à Terra do Mal, apelidada, numa histórica ironia, de Chão Bom.
Olho o Mausoléu. Nele pouso trinta e dois cravos vermelhos. Repito aos meus companheiros, como o fiz no dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro: O nosso padecer não foi em vão. Unidos na vida e na morte a bem da Nação.
Pela alameda do cemitério caminho em passo arrastado. Trago a solidariedade, as memórias, a liberdade. Trago a voz da Amália num fado outrora vedado: “Por teu livre pensamento, foram-te longe encerrar, tão longe que o meu lamento, não te consegue alcançar, e apenas ouves o vento, e apenas ouves o mar…oiço apenas o silêncio, que ficou no teu lugar”.


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