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Solidão

As férias e o seu benefício

Solidão

Escreve quem sabe

2021-10-29 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Vou escrever sobre o meu último espanto. Ao calhas, li que podemos alugar um amigo por 40 dólares à hora. Sim, leu bem. A ideia nasceu no Japão e já chegou aos Estados Unidos. Não tarda nada, invade a Europa com um sorriso nos lábios. O negócio promete pegar de estaca. A solidão passa a ser, afirmam, uma questão de preço. Pelo meio, há empresas que garantem sol e praia, profissionais com dentes destapados a burilar felicidade. O alvo está bem definido: gente que vive para o trabalho, com dinheiro no bolso e sem ninguém em casa.
Este novo olhar de Mundo ganhou visibilidade no livro “O Século da Solidão – Como restaurar as ligações humanas”, redigido pela economista inglesa Noreena Hertz. Uma reflexão que envergonha um tempo sem alma, longe do bulício da era dos nossos pais.

Outrora, as casas eram fartas de humanidade. Gordas de afeto. Viciadas na palavra. Doces em partilha. Saber que temos que pagar para sermos ouvidos, humilha o homem. Chupa-lhe a essência. Ninguém é ilha, muito menos ilusão de voz.
A palavra solidão mói. Esgravata a cabeça. Infeta-a. Abre a porta a fantasmas. O corpo mirra. O olhar deixa de ter velocidade. Tudo parece ilógico numa época descomunal em potência tecnológica. Há de tudo e à escolha do freguês. Parecemos invencíveis. Podemos viajar, mostrar, dizer e baralhar de acordo com a neura. Há mulheres sem um traço, sem um rabisco, sem aquela ruga que marca o charme. Há Adónis por todo o lado. O que não há à venda é o toque. É intransmissível.

Se está a morder os lábios e a fazer cara feia, passe os olhos pelo site rent-a-friend. Há soluções várias. O plano standard é o início de uma viagem que promete êxtase. Um tráfico de ofertas que arregalam a boca. Basta ter algibeira pesada. É tudo à grande.
Há muito que a ciência tem colocado o homem, em diferentes áreas, no banco de suplentes. À medida que o campeonato avança, a prateleira é o destino. Há exemplos para dar e vender. O que há uns anos causava urticária só de saber, é hoje indiferença.

Por estes dias, investigadores do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS) concluíram que um em cada quatro idosos se sente só e tem sintomas depressivos. Este desfecho saiu de um projeto – Qualidade de Vida e Envelhecimento em Espanha, Suécia e Portugal – estendido por três anos, onde foram avaliados os desafios associados ao envelhecimento demográfico. É arrasador: estamos perante uma epidemia que grassa por todo o lado. Com ela, problemas mentais que exigem “medidas urgentes destinadas à promoção da saúde e da qualidade de vida entre as pessoas idosas”.
O tema está de tal forma na ordem do dia que a própria Assembleia da República recomendou ao Governo que crie e aplique uma estratégia de combate à solidão, enquanto eixo estratégico de saúde pública. Só em Portugal, convém refletir, 20,4% de mulheres e 7,3% de homens acima dos 50 anos sofrem de solidão, dados que tendem a agravar-se com a idade.

A globalização da solidão despe quem argumenta que as redes sociais são o farol de união de gerações e motor, em escala, de todo o género de oportunidades. Há muito mais vida que estar ligado a um computador ou smartphone. A talho de foice lembro a recente entrevista que o neurologista argentino Facundo Manes deu ao El País. O clínico argumenta que iremos voltar a colocar o foco no ser humano. Em cinco anos, “passar o dia todo no WhatsApp será tão mal visto como fumar num avião. A tecnologia não vai mudar a estrutura do cérebro, mas acredito que, pela primeira vez, estamos perante um dilema que possibilitará essa evolução”. Ora esta defesa interroga para onde caminha o homem cada vez com mais ruído e seduzido por múltiplos passos.

Ancorar escolhas no silêncio é contranatura neste palco de luzes. Para que elas não apaguem, solta-se, tanta vez, o pior da natureza humana. Não há aqui ingenuidade. O parar, dói. Obriga a olhar no espelho real. Sem rímel. Como escreve Malraux: “Se existe uma solidão em que o solitário é um abandonado, existe outra onde ele é solitário porque os homens ainda não se juntaram a ele”. Enquanto não houver o equilíbrio, não há dança nem tango. Entretanto, ficam os cobres em cima da mesa antes que a porta se feche.

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