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Ideias

2023-06-23 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Quando acabarem de ler este texto acreditem que tenho o coração a bater em ritmo aceitável. Deixei esventrar o tumulto interior destes dias, arejei a mente e avancei, sem pressas, em direção ao computador onde estou neste momento a soltar o que tenho dentro de mim.
Este incomum preâmbulo acontece pelo que vi e senti no interior de um hospital público de referência no Norte do país. Um espaço que já conhecia há alguns anos pela triste sina que um familiar próximo recebe desde que me conheço.

É raro o ano que não piso um corredor de hospital, quase sempre dirigido pelo Estado. Tenho, por via disso, alguma autoridade em descrever e comparar o que tem sido uma caminhada por entre agulhas, sangue, comprimidos, cheiros, batas brancas, sorrisos em esforço e choros despregados. Um cordão que aperta o peito sempre que olho para um edifício erguido para resolver ou tentar resolver o bem mais precioso da humanidade.
O episódio que impeliu estas palavras iniciou na chegada ao hospital. A paciente foi convocada a comparecer na véspera da cirurgia. Manhã cedo estávamos a caminho para, antes das 10 horas, já estarmos na receção do piso aprazado para a operação. Sentou-se e aguardou. Ao lado, mais velhos que novos com maleitas várias. Perto do meio-dia, uma enfermeira veio comunicar que a entrada no quarto estava “um pouquinho atrasada” pela ausência de camas. A comparência foi aproveitada para recolher o historial do meu familiar. O relato espantou de tal forma a profissional de saúde que disse que já chegava, mais não seja pela ausência de papel para registar o que ouvia. Pelo meio, nem água nem comida.

Começou a ser escutado algum burburinho. Aumentou à medida que nada acontecia. Uns levantaram-se, outros mexiam o corpo como podiam. Estendiam as mãos e as pernas. Sem ventilação, tocavam na roupa e sacudiam o cabelo entre os dedos. Os olhos moviam-se sempre que uma porta abria. Vozes soltas. Por uma garganta saiam camas com doentes, alguns em estado deplorável. Já depois da uma da tarde, surge uma bandeja com comida, um guardanapo e um copo de papel vazio. De seguida, rompe do nada alguém a cantarolar com uma esfregona sem balde. O sujo era empurrado para fora da sala.
Ingénuo, comuniquei a ausência de água, porventura, por descuido. Nada disso. Quem quisesse beber que abrisse a torneira da receção ou os cordões à bolsa. O hospital não oferecia água. Medrou o coro de vozes. Para acalmar, garanti à infeliz utente que eu próprio iria comprar água.

A rebentar por dentro, percorri o corredor em busca do líquido. Encontrei a primeira máquina. De seguida uma outra. Não consegui recolher a bebida. Culpei os nervos. Engano. Uma auxiliar que peregrinava, em marcha lenta, informou-me sobre o não funcionamento das mesmas: “oh, meu querido, isso já está assim há muito tempo”. Tentei reequilibrar o fôlego. Foram-me apontadas as alternativas: ou sair do edifício ou enfrentar a cantina hospitalar. Escolhi a última na vã esperança de ser mais rápido. O labirinto foi vencido por entre silêncios e olhares indolentes. Enfermeiros, médicos, auxiliares, pacientes, seguranças e visitas. Cara fechada, passos vagarosos.
À medida que aproximava o olhar para a área de venda, mais pressenti que a escolha tinha sido errada. Um turbilhão de cabeças à cata de qualquer coisa para enganar o estômago. Nesse torpor, lembrei-me de Carlos Drummond de Andrade: “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Tudo em mim era grito. Só queria agarrar algumas garrafas de água para matar a sede à desgraçada que estava engolida pelo desânimo. Volvida quase uma hora, transportei o néctar que abriu o olhar a um ser sedento de ingerir o ouro branco deste planeta.

Só a colar nas seis da tarde obtivemos luz verde para nos dirigirmos ao quarto. Quem acompanhei ia arrastada. O corpo, um remendo. O olhar, um vazio sem maré. À espera, cinco inquilinas, na maioria com demência. As duas noites que se seguiram, segredou-me, foram claras. Talvez fossem a morte que nos usa “incessantemente”, como escreveu Jorge Luis Borges. O que sei foi o travão que tive: apenas 40 minutos. Um só para a ver. O outro, agonizava de preocupação na entrada. Não importam os 300 quilómetros diários. A regra é cega no princípio, mas não é para todos. É irrelevante a imbecilidade de manter o que já não faz sentido. Ficou-me o choro do telefonema ao segundo dia. É nele que mora o meu desdém pelo serviço público de saúde que não honra quem o fundou nem protege os miseráveis que são obrigados a coabitar nele. Este país não é para quem está doente. É para quem pode estar doente.

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