Correio do Minho

Braga,

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Redundâncias poéticas

“Portanto, saibamos caminhar e …caminhemos!”

Redundâncias poéticas

Voz aos Escritores

2023-03-24 às 06h00

Fernanda Santos Fernanda Santos

A noite já dorme no escuro
e eu aqui fechada pelo lado de fora
só,
sem ninguém que me mande entrar para dentro.

Seguro nas minhas mãos as gotas do orvalho
e amoleço as côdeas que a tarde
soalheira besuntou […]
Fernanda Santos

Outra vez março. Mês da poesia. Vida. Mais uma crónica. À primeira vista, parece que me vou repetir, que já disse tudo sobre as experiências que tive, as viagens realizadas, os livros lidos ou a infância que teimo em não deixar morrer em mim.
Certamente que o leitor já se apercebeu do prazer que sinto ao reviver cada um desses momentos, tenham eles acontecido no campo ou na cidade. Sim, caro leitor, eu sou filha dos montes onde nascem cardos e giestas de verdade. Sou, também, mãe dos canteiros dos jardins da cidade onde nasce o perfume da liberdade. É nessa dicotomia que alforjo as heranças recebidas e transporto-as por caminhos imprevistos. São elas que me fazem demorar nas histórias com as tais redundâncias que alguns consideram desnecessárias e inúteis. Talvez até pensem que as palavras possam estar a mais e, por isso, devam ser retiradas. Ora, pensem! Não será o uso de muitas redundâncias da língua uma demonstração do bom funcionamento da mesma?
A língua é um mecanismo vivo, uma forma de mostrar aos outros o que genuinamente sentimos.
A este propósito, lembrei-me agora de quando não havia água canalizada em casa e tinha de se ir encher o cântaro de barro à fonte. Havia sempre alguém a lembrar: — Não entres para dentro com o cântaro na cabeça, rapariga!
E a rapariga descia a rua com um sorriso nos lábios. O sorriso, então, sabia a água fresca! Aquela advertência “não entres para dentro” vinha embrulhada de afeto e de protecionismo. Por um lado, não podia correr o risco de partir o cântaro no umbral da porta; por outro lado, não se podia ficar sem a água para a ceia.
Quem poderia ter a ousadia de suprimir palavras à cantiga popular, cujo verso “A mim não me enganas tu” fora usado pelo brilhante Miguel Torga? Ora cantem comigo, caros leitores:

A mim não me enganas tu
A mim não me enganas tu
A mim não me enganas tu
A panela ao lume
O arroz está cru

Serão inúteis as vibrações no ar que nos entram pelos ouvidos com um nome tão pomposo de pronome pessoal oblíquo repetido?!
E na dança? Qual a utilidade dos movimentos se não servem para carregar um mero cântaro da água sobre a calçada portuguesa? Há tanta coisa que não parece mover os nossos dias e, no entanto, andamos pelos dias com sede disto tudo. Vezes sem conta ouvimos dizer: nesta terra não se passa nada de útil. Pois bem, esta minha singela crónica serve para o empurrar, estimado leitor, para um passeio até à Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva para visitar a sétima edição da Expoética de Braga e se deliciar com a arte das coisas aparentemente inúteis: poesia, pintura, escultura, fotografia e afins, mas que lhe podem vir a ser de alguma serventia.
E se ainda ficar sequioso de conhecimento, pode entrar na biblioteca e ler um conto, uma novela ou um romance.
No final da observação da arte exposta, da leitura de um livro ou simplesmente de um poema, tornar-se-á uma pessoa mais empática e mais atenta.
Verá, certamente, o mundo com outros olhos, olhos a transbordar de redundâncias poéticas como esta quadra de António Correia de Oliveira (in Cantigas)

Ó ondas do mar salgado,
D’onde vos vem tanto sal?
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal.
ou, anos mais tarde, também reiterado por Fernando Pessoa:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!

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