SNS: uma Ministra em falência política
Escreve quem sabe
2025-06-14 às 06h00
A cepa de 1974 produziu revolução e alegria no povo português. Rara era a casa que não tinha duas ou três crianças. Na cidade ou no campo, fervia um tempo demográfico pujante. É nesta vindima que abriguei os meus primeiros anos. Um era de liberdade, longe do vício da televisão e, ainda mais longe, da dependência das redes sociais.
Mesmo tendo nascido no coração de uma grande cidade europeia, Paris, recordo os magotes de crianças que brincavam no jardim erguido junto à casa onde habitava. Um brincar descomplexado, nutrido de pertença, onde era fácil estabelecer relações. A língua nunca foi barreira porque o prazer de brincar, fosse ao que fosse, falava mais alto.
Na década seguinte, no Barroso, tive o privilégio de estender esse tempo que conta, suado ao toque do sino. O relógio era para poucos e mesmo esses, raramente o utilizavam para cumprir lei.
As aldeias eram compostas por exércitos de crianças e jovens. Apesar da minha timidez, nunca tive dificuldade em arranjar um companheiro para brincar. Uns puxavam pelos outros. Ninguém ficava isolado. Foi neste quadro que construí a minha infância que tantas vezes aqui descrevo como o período mais marcante da minha existência.
Hoje o mundo caminha de cabeça invertida, só assim se justifica a febre que alastra pela Europa, vinda dos Estados Unidos, e cujo espelho maior está radicado no Brasil.
O protagonista é o bebé reborn, implantado no mercado com uma semelhança tão real que chega a ser desconcertante. Este fenómeno nasceu após a II Guerra Mundial – onde era difícil encontrar brinquedos – cresceu nos anos 90 enquanto arte, sendo hoje uma atração irresistível para milhares de pessoas.
Não obstante, só neste século foi expandido no mercado global. O contributo maior está a ser dado pelo Brasil onde estão a ser adotados comportamentos demasiado realistas que causam desconforto ao comum dos mortais. Aqui entram os vídeos do TikTok e o que é colocado no Instagram, rastilho que enfrenta o incêndio das redes e onde podemos contemplar histórias de abrir o queixo com o realismo destes bonecos.
Há já quem estude o organigrama mental das causas. Uns defendem que podem ter fins terapêuticos. Sim, porque há de tudo. Há quem os compre por gosto, para fazer coleção e há ainda os que veem nesses bonecos verdadeiros filhos.
Se esgravatarmos até à semente, ficamos a saber que um bebé reborn deve ser feito à mão, isto é, nunca há um 100% igual ao outro. Todo o detalhe conta. A pintura deve ter veias, profundidade da pele, tons e sobre tons de tinta, misturas complexas de cores e cabelos também feitos à mão, independentemente de serem pintados ou enxertados.
Há de todo o tipo consoante o gosto e a carteira. Desde miniaturas que se podem levar na mochila, até bebés grandes que representam crianças de mais de um ano. Porém, os mais procurados são os bebés entre o recém-nascido e um mês. De resto, podem ser adquiridos a sorrir, bocejar, dormir, acordados, com mãos fechadas ou abertas, com pernas esticadas ou dobradas.
A procura é variada. Desde crianças – embora não seja recomendado para menores de 12 anos sem supervisão – a colecionadores, apreciadores de arte com faro mais exigente até à terapêutica. Neste ponto, convém ser sensível na argumentação porque entramos no campo do luto.
Não são raros os exemplos que mostram idosos que têm muita vontade de ter netos ou bisnetos e não podem ter contacto direto com eles por viverem longe ou algo semelhante, ou até mesmo porque os seus descendentes não podem satisfazer essa vontade. A doença de Alzheimer entra nestas contas porque um bebé reborn, pode transformar-se num bebé real ao colo. Também as mães em luto conseguem olhar para este bebé, não como substituição, mas como um auxílio nesse momento difícil.
Chegados aqui, temos de colocar uma baliza com rede para entendermos a relação entre o benefício e o perigo. É fácil apontar o dedo e alinhar pelo rebanho. A sociedade está prenha de absurdos o que não significa que no ventre não tenhamos a resposta adequada.
A maioria que resistiu a ler-me até este parágrafo pouca margem deve dar a mulheres que fazem festas de anos para os bonecos, criam quartos com todos os pormenores, levam o bebé para todo o lado, vão com ele a um médico fictício, levam-no para uma creche, dão-lhe banho, trocam as fraldas. Estas atitudes estão catalogadas como “Rage Bait”, uma estratégia cujo fim é provocar o mundo online na tentativa de obter mais público. Contudo, se mudarmos o lado da moeda convém sublinhar o que escrevi há pouco, isto é, lembrar que o uso terapêutico pode acontecer, por exemplo, em situações de luto, sendo usados de forma simbólica e proporcionando um espaço de recordação e conforto ao enlutado. Aliado a este ponto, os bonecos podem ser adquiridos em contexto de pacientes institucionalizados, como é o caso de pacientes com demência e em que pode ser obtida diminuição da ansiedade com efeito calmante e reconfortante com o seu uso.
Neste prisma, importa parar e refletir no alcance devastador da saúde mental. Basta pensar que alguém confunde, com convicção, um objeto com um ser humano. O problema não é o boneco em si, mas a forma como ele está a ser investido de uma função que deveria ser preenchida pela vida como ela é.
Por outras palavras, a meu ver, vivemos um tempo em que o real parece infernal. Urge encontrar ferramentas e não máscaras. Se pararmos um pouco, quem compra um bebé reborn, sabe que não vai chorar nem adoecer de verdade ao mesmo tempo que não responde com nada real. É uma linha vermelha, perigosa e sensível, quando transferirmos os nossos afetos para o inanimado, porque, sem darmos conta, vamos perdendo a capacidade de lidar com a dor, a ausência e, em último instante, com a própria vida.
Por muito kafkiano que este assunto seja, é necessário escutar sem julgar. O que para muitos é louco, para outros tantos é uma necessidade, por exemplo, de esconder uma dor antiga ou um vazio afetivo real. A terapia e a psicologia são fundamentais na tentativa de entender esta “proteção” que pode ter múltiplas justificações: perda (gestacional), solidão ou fragilidade psíquica.
Esta reflexão surge num tempo em que há menos bebés a nascer em Portugal. No ano passado foram realizados perto de 85 mil testes do pezinho.
Fora os anos da pandemia, é o valor mais baixo da última década. Se juntarmos a isto outros números como estes que revelam que há 60 anos eram mais de 200 mil nascimentos por ano, estamos conversados.
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