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Quase, mesmo quase

Voz aos Escritores

2022-12-23 às 06h00

Fabíola Lopes Fabíola Lopes

As correrias ultimam-se entre as luzes e brilhos das montras, os anúncios das aquisições mais eminentemente reveladoras do amor que se pode ter por alguém próximo, como se o dinheiro investido num certo objecto fosse a medida quantifica- dora ao invés do tempo, da atenção, do cuidado. Dos dias dedicados aos tremores e angústias, as horas de celebração de conquistas, os minutos, céleres minutos, de verdadeira comunhão da existência.
Em cima da mesa espera-se a dedicação ao palato. O queijo, o presunto ou o simples patê de atum, dependendo dos gostos, fazem as entradas para o jantar mais especial do ano. O polvo frito inunda a boca de uma aguadilha saudosa que se junta em valsas com o bacalhau cozido envolto em volúpias de azeite a estalar as delicadas fatias de alho. A couve, verde vida, curvada a fazer de cesto para receber o que está quase a chegar. O vinho, escolhido a preceito para temperar canseiras de um ano de espera, rega esperanças prestes a nascerem.

No intervalo feito de descanso digestivo o pensativo cigarro devolve-me outras realidades mais ou menos próximas. Não será tanto a falta das iguarias, mas a falta destas com as pessoas mais próximas. Uma combinação de abandono da matéria palpável de que é feita esta consoada com a ausência das pessoas que nos foram, que nos são.
As dificuldades financeiras estão aí, não estiveram sempre?, as solicitações solidárias reproduzem-se. Enquanto houver o que comer, também haverá o que dar. Dividir é sempre uma forma de nos multiplicarmos, uns pelos outros. A saúde e a educação estão em crise. Manifestam mais audivelmente a sua morte lenta, falta de investimento contínuo disfarçado pelos esforços individuais que compõem o coletivo. O estado social não chega para acudir tantas necessidades. Afinal, para onde vai mesmo o dinheiro dos nossos impostos? Era por estas indignidades que as ruas deveriam ser cheias de gente e não por causa de homens que correm atrás de uma bola e ganham mais num mês do que um adepto em 5 anos.

E a guerra. Este ano marcado pela guerra inesperada, pelo impensável, pelo horror. Este ano que seria de recuperação de alguma normalidade, carregado com um inferno inverno dentro. O frio, a destruição, o abandono. Os velhos e as crianças. Os soldados. As famílias. As mulheres.
Solto mais um suspiro de fumo e penso na Mahsa Amini. Nela e em Nika Shakarami, Hadis Najafi, Minou Majidi, todas mortas por causa dos seus protestos. Hijab. Palavra chicote. Não por um pedaço de tecido a tapar os cabelos, mas pelo que isso representa em repressão e anulamento. Em retrocesso. Se pensar que a democracia foi inventada na Grécia por volta de 510 a.c., uma clarividência inunda-me a mente: não evoluímos nada. E nada está garantido, seja qual for a circunstância. Espero que nada disto aconteça a Taraneh Alidoosti e que possa ser uma referência viva desta resistência.

O cigarro termina e regresso à mesa. A mesa cheia de modas e tradições que num segundo nos fazem sentir o calor da bem querença com que fomos bafejados na infância. O arroz doce à moda da avó Tilita, a aletria à moda da avó Quina com os mexidos a condizerem. As rabanadas pelas mãos do Miguel, como a avó Lourdes as faria se pudesse. Uns fios de ovos para contentamento da avó Laura e o bolo rainha para gáudio de todos, especialmente torrado na manhã seguinte, com uma pluma de manteiga, para o pequeno-almoço.
Está quase. Quase a chegar essa magia que nos envolve com o nascimento do menino que nos encheu de esperanças e de mensagens de justiça. De igualdade e de fraternidade. De crescimento interior, de caminhos mais do que de horizontes. E se tivesse sido uma menina? Certamente não teríamos hoje esta celebração. Acredito que lá atrás a sua voz tivesse sido anulada e aniquilada, como o fizeram com tantas, incluindo com Maria Madalena. Como ainda hoje querem fazer no Afeganistão ao impedirem as mulheres de frequentarem o ensino superior.

Quase a chegar. Ou se calhar até já chegou. Até nos acompanhou todo este mês de Dezembro em preparativos e ações solidárias, em jantares e abraços, em votos e temperanças, para desaguar neste cálice de vinho do Porto, escorrega aberto para o avô Lopes, para o avô Nando e para o avô Abílio.
Às vezes, só é preciso estarmos mais atentos.?

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