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É preciso coragem para ter esperança

A responsabilidade de todos

É preciso coragem para ter esperança

Voz aos Escritores

2021-02-19 às 06h00

Fernanda Santos Fernanda Santos

TALVEZ UM DIA
Onde é seco o vale
E as árvores dispersas
Haja rios e florestas.
E surjam cidades de aço
E os pilões se tornem moinhos.
Ilhas renascidas
Nuvens libertas...
À medida dos nossos desejos.
Sim
Talvez um dia...
Quem sabe!
Arménio Vieira (poeta cabo-verdiano)

Apesar de todas as incertezas que pairam sobre a minha cabeça, bem lá no fundo de mim sinto uma vontade enorme de não dar tréguas ao futuro. Chamo para esta amena conversa uma referência no mundo das letras, Mia Couto. “Na realidade, diz ele, no momento atual e global, muitos de nós deixamos simplesmente de querer saber do futuro. E parece recíproco: o futuro também não quer saber de nós. Estamos tão entretidos em sobreviver, que nos consumimos no presente imediato.
Para uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo direito. Fomos exilados da atualidade. E por inerência, fomos expulsos do futuro.”
Hoje também estamos exilados num espaço, mas nunca daquele lugar e daquele tempo.

Nasci em tempos de muita dureza. Aceitei, sem liberdade para contrariar, todas as contradições e a aridez dos dias e das noites. Nesse filme a preto e branco, pintado com as cores da pobreza e da exploração humana, o mundo era visto a partir da nossa rua. O resto do mundo não existia, estávamos ingenuamente sós. Nessa época, as crianças morriam muito na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, pois as tarefas de uma mãe acumulavam-se como sardinhas na canastra. Contar os filhos vivos e os mortos era normal. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. O negro cobria o corpo e a alma dos que ficavam. O horizonte gemia. Contra a bebedeira e brutalidade dos homens e a dureza do trabalho, as mulheres escutavam a lira que jamais deixava de entoar pautas de esperança e resistiam, tal como podemos ver na estrofe de Fernando Pessoa:

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.

Em dias cinzentos, as crianças vestiam-se de cores, das cores com que pintavam as telas das brincadeiras, afastavam as dores das quedas das traquinices ou das tarefas domésticas, e os seus olhos sorriam de alegria. Dado que a porta servia para a ida para o trabalho árduo e agreste, as crianças entravam e saíam pelo postigo da criatividade.
São o não tocar, o não brincar, o não correr, o não abraçar, o não sair, o não conviver e o não aprender o verdadeiro prenúncio de desgraça dos princípios que dominam a educação das gerações que crescem em plena pandemia. Não são só os mais pequenos que hoje temos de persuadir a estar permanentemente em casa, sem os colegas de escola, os amigos da rua e sem gastarem as energias próprias destas idades. Os tempos são difíceis para todos e há decisões complicadas que têm de ser tomadas em situações de emergência perante um número tão elevado de mortes e a resposta em termos de cura tão incerta. Num tempo em que a ciência já fez tantos progressos, o que nos parece certo e normal é o contar dos mortos e a fatalidade da doença. E é aqui que regresso à infância, a um tempo em que ir pegar num caixão de uma criança e participar nas cerimónias fúnebres era banal, mas marcante. É nestes dias de angústia que essas memórias se avivam. Vestidas com roupa branca, lá iam quatro crianças, sempre do género feminino, participar de um ato para o qual nem era preciso preparação.

Aparentemente, o escolher das meninas em vez dos meninos pode parecer discriminação quando até morriam mais crianças do género masculino. No entanto, justificava-se pela simples razão dos meninos usarem fatinhos escuros e não se considerarem adequados aos denominados “anjinhos” que morriam tão precocemente.
Ninguém pensava nos efeitos secundários do ato numa criança. Ninguém pensava que nenhum sono afastava as imagens vivenciadas e que contrariavam o normal conceito de nascer, viver e morrer. A este propósito, diz-nos a escritora Aida Araújo Duarte: “Apesar de tudo, a bondade da inocência fazia-me generosa. […] Havia, por vezes, a pecaminosa audácia de uma fuga ao suplício sempre repetido […] Era uma sensação estranha, um misto de medo e de orgulho […].
Talvez pelas lutas que travei desde cedo e pelas pedras que fui colecionando ao longo do percurso, continue a servir-me delas como suporte de uma aprendizagem continua de coragem e esperança no futuro.

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