E a guerra continua...
Voz aos Escritores
2024-05-03 às 06h00
Ainda hoje recordo aquele dia, o embarque das tropas portuguesas para o Ultramar, no cais amontoado um mar de gente, homens maduros, mulheres de todas as idades, algumas com crianças ao colo, crias amarradas às saias, noivas de faces de cera, mulheres trajadas de luto, a comunhão do silêncio em milhares de gargantas embargadas, o esvoaçar triste dos lenços brancos, o desespero contido nos olhares vidrados, o peso mórbido da despedida dos que partem para a guerra, filhos, netos, noivos, maridos, irmãos, tios, primos, namorados, amigos, uma guerra longínqua, colonial, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. O barco soltou um brado de estremecer entranhas, gritava a dor da multidão calada. A minha Avó Amélia hirta, os olhos azuis quietos, São Cristóvão estrangulado nas mãos de parafina, os lábios uma linha austera, o meu Avô Páris ao seu lado, petrificado. Despediam-se do filho recrutado para a guerra na Guiné-Bissau. Senti-lhes o sofrimento, era eu menina, impossível não ser contagiada pela angústia da multidão. É terrível a partida dos jovens para os combates, a incerteza do retorno, o pavor de ser aquele o derradeiro abraço. Nos meses seguintes, o desassossego da minha Avó, o terço desgastado de mil preces, Nossa Senhora de Fátima evocada noite e dia, a fé nas promessas, o menino Jesus rechonchudo que comprou nesse Natal sem a alegria do Advento, um menino achocolatado como os garotos das colónias, quiçá a minha Avó visse na cor da pele do Salvador de barro bom agoiro para o filho tão longe de casa, numa terra desconhecida que teimavam em dizer ser nossa. Nesse Natal eu diante do televisor a preto e branco, o desfilar dos soldados sob o calor tórrido de África, Adeus, até ao meu regresso, horas infindas à espera de ver o meu tio e o meu primo Zé Manel, todos tão parecidos, os soldados transpirados, sorrisos de alento, outros sisudos, que a guerra rouba risos e estende prantos, ainda que contidos, alguns a tartamelearem nas palavras como tropeçaram na guerra que lhes fora imposta. Adeus, até ao meu regresso. Palavras de esperança oferecidas às famílias, gentileza da RTP ou propaganda do Estado Novo. Dez mil não regressaram, quarenta mil voltaram estropiados, treze anos de guerra colonial, do morticínio dos jovens portugueses numa disputa déspota e descabida a mando dos engravatados que teimavam em preservar o Império Colonial Português. Vinte e cinco de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, o fim da ditadura, a Liberdade de um país amordaçado e torturado por quase meio século. Depois, a independência das colónias, a autodeterminação da Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, o retorno de milhares de portugueses que lá tudo deixaram, vidas interrompidas, gente de tudo espoliada, salvaram a pele e o que traziam na escassa bagagem. Muitos portugueses da metrópole não viram com bons olhos o regresso dos “retornados”, como depreciativa e erradamente lhes chamavam, talvez por recearem que lhes tirassem os empregos, talvez pela invejazinha que tinham dos portugueses das colónias, portugueses de segunda categoria obrigados a deixar o património que tanto lhes custara a erguer, anos e anos de labuta em África, sujeitos ao clima hostil, às doenças e à guerrilha. Os portugueses da metrópole a desdenharem, Os retornados com a mania de que eram ricos, Exploradores de pretos, Agora querem subsídios do Estado Português, homessa, só essa faltava, comentavam, no mesquinho regozijo da desgraça alheia. Na verdade, entregamos às ex-colónias hospitais, barragens, escolas, estradas, caminhos-de-ferro, cidades, aeroportos, fazendas, comércios e indústrias. Na verdade, os povos das ex-colónias tinham direito à autodeterminação. Claro que houve abusos, em todos os países os há, mas a descolonização foi mal gerida, sequer existiu um processo, uma negociação justa entre colonizados e colonizadores. Todo o património ficou lá, o erigido pelo Estado português e o dos cidadãos que regressaram a Portugal com uma mão à frente e outra atrás. E o preço mais elevado que pagamos foi a vida de dez mil jovens portugueses que pereceram numa guerra sangrenta e inútil. Volvidos cinquenta anos, é lamentável ouvir o Presidente da República Portuguesa aventar sobre indemnizações aos países outrora colónias portuguesas. É um insulto aos ex-combatentes, às famílias que perderam os filhos na guerra colonial, aos portugueses que de lá voltaram sem nada. É um atentado ao bom-senso. Ainda hoje, o meu tio não quer falar da guerra colonial, são memórias demasiado dolorosas. E as palavras libertadas são facadas em feridas que jamais saram. Respeitemos os mortos e os vivos e quem empurrado defendeu um Portugal obsoleto e sebastianista. Respeitemos os ex-combatentes que trouxeram consigo traumas físicos e psicológicos insanáveis. A História e os factos falam por si. A conta já foi liquidada. Com bens, sangue, suor e lágrimas.
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