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Portugal, cadavre exquis

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Portugal, cadavre exquis

Escreve quem sabe

2025-06-14 às 06h00

João Ribeiro Mendes João Ribeiro Mendes

Recordo-me de ter lido, há anos, na peculiar obra teológica O Céu e as suas maravilhas e o inferno, segundo o que foi ouvido e visto (1778), do místico sueco Emanuel Swedenborg, uma divertida passagem: certos mortos, ignorantes da sua própria condi- ção, perambulavam entre os vivos como se nada houvesse mudado, até que uma presumível entidade angélica, finalmente, se aproximasse para lhes revelar a verdade.
Essa imagem voltou-me agora à memória com perturbadora nitidez. Porque talvez nada descreva melhor o Portugal contemporâneo: um país que morreu sem o saber. Sem se dar conta, deixou de ser soberano, transformado num protetorado submisso da União Europeia. Como os mortos de Swedenborg, fingimos normalidade – celebramos efemérides ocas, obedecemos a diretivas externas sem discussão, e chamamos “solidariedade europeia” ao que não passa de uma vassalagem consentida.
Vivemos num teatro de independência. Falamos em democracia e autodeterminação como quem repete palavras que já não entende. A verdade, porém, transparece nas encenações: como no passado dia 10 de junho, em Lagos, onde o ritual do Dia de Portugal revelou mais ausência do que presença, mais cansaço do que fervor.
Não é melancolia patrioteira, mas uma constatação amarga: cruzámos o limiar da irrelevância histórica. E, no entanto, continuamos em palco, a repetir gestos caducos, como quem espera um aplauso que nunca mais chega. O sintoma mais grotesco talvez tenha sido a comemoração da conquista da Liga das Nações em futebol – olimpicamente ignorada fora de portas e, mesmo cá dentro, reduzida a uma aparição apressada de meia dúzia de jogadores na Cidade do Futebol em Oeiras antes de partirem para férias. Triunfo tão pífio quanto a ilusão coletiva que ainda nos sustenta.
Na terra de Gil Eanes, assistimos ao espetáculo mórbido de um Presidente desbotado, ladeado por figuras públicas transformadas em caricaturas de si mesmas. Juntos, representaram o número habitual: bandeiras, hinos, metáforas patrióticas – tudo recitado sem fé, como quem cumpre um papel vazio de sentido.
Falou-se de história, de identidade, de Camões – como se isso ainda bastasse para sustentar a alma de um país. Há uma coreografia de Estado, uma nostalgia fardada, e um país que se aplaude por mera persistência biológica. Mas sobreviver não é viver. Portugal alimenta-se do passado como um aristocrata falido a vender os móveis da casa senhorial, enquanto limpa com reverência desgostosa os retratos dos antepassados. Em vez de futuro, resta-nos apenas o museu. No centro, jaz uma ideia de nação que ninguém ousa declarar morta.
Não estamos em guerra, nem em ruína económica. Estamos pior: mergulhados numa letargia que já ultrapassou o temor de existir, tal como José Gil identificou. Se o medo ainda implicava tensão e consciência, hoje resta apenas um vazio repetido. Como numa peça encenada até à exaustão, os atores seguem em cena por inércia – não por crença, mas porque já não sabem sair. Deixámos de temer existir; limitamo-nos a fazê-lo, sem pulsão e sem sentido.
O país prossegue, sonâmbulo, a imaginar-se vivo, relevante, ouvido, convencido de que ainda tem algo a dizer à Europa, ao mundo, a si próprio. Mas o que resta é apenas o eco dos gestos antigos, a encenação burocrática da vida pública, a liturgia dos dias úteis e das efemérides.
Falta quem ouse dizer, com a crueza do anjo swedenborguiano: “Portugal, estás morto. É hora de renascer – ou, pelo menos, de acordar do coma em que te afundaste”. Porque nenhum país se salva enquanto insiste em fingir que ainda está vivo.

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