Nevoeiro soprado, verão sem mergulho adiado
Escreve quem sabe
2022-06-25 às 06h00
A memória é, por regra, curta. Por maior que seja o feito, o ser humano tende a diluir. Um pecado que atravessa a idade e esbarra na insustentável ingratidão. Há exemplos ao virar da esquina. Uns entram no lar pela caixa mágica. Outros, pelas ondas. Os que doem mais, moram connosco.
A desmemória ultrapassa o descuido. O não alimento fere, tantas vezes, um caminho que pensávamos certo. Pode roer de tal forma que esburaca a alma.
Fez este mês cinco anos que Portugal protagonizou um filme que aterrorizou parte do Mundo. Um incêndio diabólico ceifou cerca de 70 pessoas, feriu 250, destruiu 500 casas e provocou perto de 200 milhões de prejuízos. Mescla de mal que obteve um nome: Pedrógão.
Esta vila portuguesa do distrito de Leiria, província da Beira Litoral, está para sempre carimbada por esta madrasta desgraça. Só por si, devia exigir que todo e qualquer comportamento tivesse em conta o que se passou. Malgrado o desespero e o ruir de famílias, o homem volta a violar a memória.
Convém avivar a consciência e dizer que estou a escrever sobre o mais letal incêndio de toda a história portuguesa que fez despir um sistema de Proteção Civil arcaico e descoordenado. O rastilho despoletou pelas duas da tarde (17 junho 2017) em Escalos Fundeiros, no concelho de Pedrógão Grande. Bastaram poucas horas para alastrar pelos municípios de Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. Os entendidos justificam o que ocorreu com um termo todo ele estranho, longe de poder pacificar quem, ainda hoje, padece com as dores provocadas pelas chamas. É com a palavra downburst – vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo, que após atingir o solo sopra de forma radial em todas as direções – que se tenta explicar o inenarrável. Cinco anos passaram e continuamos à espera do Plano Marshall que estanque o sangue que teima em verter do olhar de centenas de famílias. Ilusões perdidas. Sonhos desfeitos. Traumas eternos.
O que mais amola é saber que era previsível ter acontecido o que aconteceu e que irá voltar a suceder. É uma questão de tempo. Somos um país sem rédea. Só paramos quando há um episódio devastador. Detemo-nos por um intervalo. Raras vezes deixámos a lição bem estudada. Não estranha que a cábula passe de geração em geração.
Desde os anos 80 que os portugueses assistem, serenamente, a violentos incêndios. Só nos últimos 30 anos arderam mais de três milhões de hectares de floresta. Um quadro que deveria corar quem governa e sufocar quem infringe. É uma vergonha saber que nada mudou em Pedrogão. Os eucaliptos rebentaram de novo. Não só voltaram a ter o fulgor de outrora como são em maior número. Uma praga acompanhada por mato descontrolado que atinge a estrada. Sabemos que houve dinheiro para fazer melhor. Não se fez porque o humano tem uma paixão de fogo com a algibeira. É por estas e por outras que estes três concelhos afetados pelo incêndio – Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos – foram dos que mais perderam população no distrito de Leiria, com Castanheira de Pera à cabeça, tendo perdido um sexto da população nesta última década.
Em contraponto, a estrada da morte (EN236-1) está prestes a receber um pequeno memorial desenhado pelo arquiteto Souto Moura. Com ligação ao IC8, a obra curva-se àqueles que perderam a vida. Todavia, está longe de reunir consenso. Os 1,8 milhões de investimento torcem o nariz a quem reclama celeridade na resolução dos verdadeiros problemas e do muito que há ainda por fazer.
Por entre tanto desgosto, florescem alguns milagres. Um deles, quase sórdido, é saber que foram salvas mais de 4.000 notas mutiladas neste incêndio. O mérito é do Banco de Portugal que conseguiu recompor notas valorizadas, enterradas durante este largo tempo.
Na senda da consequência, destaque para From Devil’s Breath (Do Sopro do Diabo), documentário produzido pelo ator Leonardo DiCaprio que retrata esta tragédia. A película integra a série documental The Tipping Point, do apresentador Trevor Noah, focada nas consequências originadas pelas alterações climáticas em todo o Mundo.
Urge apontar o dedo a quem assobia para o lado. Estou farto de discursos e de leis que ficam na gaveta. Um mofo que fede um país que tem tudo para ser molde. Já basta saber que os cinco anos mais quentes de sempre foram registados neste século. A seca está instalada. A escassez de água, a meu ver, será o drama da humanidade. Por onde começar? Por mim e por si que me esteve a ler.
08 Julho 2025
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