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Braga, sábado

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Padre Fontes

As férias e o seu benefício

Padre Fontes

Escreve quem sabe

2024-12-28 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

«Trago comigo o terço na mão e o diabo no coração.»
Padre Fontes, Diários, 1957

Há homens que conseguem ser confundidos com a terra que os viu parir. Uns por razões de excelência, outros que só pela lembrança fazem corar de vergonha. Há ainda um grupo restrito, os lendários, que conseguem, pela pegada que deixam, agrafar a terra no mapa e serem ainda maiores que ela.
Nos últimos anos tenho tido oportunidade de palmilhar o espaço e cibos de tempo com uma lenda viva que habita no Alto Barroso, cravado entre o transmontano Gerês e a cidade de Chaves. Uma terra odorífica de lendas e contrabando com pouco mais de 200 almas que não arredam pé de um chão prenho de memória. É por entre este argumento, cultivado pelo amanho da terra, com galinhas e patos à rédea solta, burros a zurrar e cães a latir que encontramos Vilar de Perdizes, aldeia onde está erguida a casa de António Lourenço Fontes, figura maior do país barrosão.
A porta raramente está fechada. Quem lá entra, encontra um santuário de paz. O cheiro é do Barroso antigo, aquele onde o fumo pintava as paredes, onde o lume aquecia o ventre. Há um escano, junto à lareira, onde cedo aparece uma caneca de vinho, pão centeio, chouriças e presunto. Com o estômago validado, há ainda espaço para licor, aguardente da boa ou um vinho do Porto que irá perdurar na mente por largo tempo.
O condimento convence, mas a força maior está no padre. Um homem que enche quem o rodeia. Procurado, observado, admirado e respeitado. Um oásis em tempo onde a memória e a gratidão são coisa rara. Um ser avançado no tempo, incompreendido pela Igreja e por tantos à cata de interesses, que demorou a pacificar a estrada.
Recordo-me bem, em meados dos anos 80, que a figura do Padre Fontes tinha uma áurea maior que a minha terra, então pouco divulgada. Quando dizia aos meus colegas de turma que era de Montalegre, poucos a sinalizavam. Se falasse do Padre Fontes, abriam os olhos com espanto. Quando em setembro de 1992, inaugurou o primeiro programa “Carlos Cruz – Quarta-feira”, a audiência foi de tal forma impactante que nunca mais tive necessidade de explicar onde ficava a sede da capital do Barroso.
Nessa era, a televisão era a luz do enlevo, embora nem todos a tivessem. Os cafés mascaravam a desinformação que imperava. Palavras como Internet, telemóvel, computador e redes sociais não existiam. Não obstante, vencia a conversa sem rede, os serões no forno do povo por entre um naco de pão, afiado por uma navalha que nunca faltava no bolso, ou uma bilhó. A partilha era farta. Inteira. Histórias e estórias ouvidas por velhos e putos. Havia pouco filtro. É nesta seiva que são marinadas as palavras do Padre Fontes que, muitas vezes, chocaram com os cânones das hierarquias. Avançou e nunca se deixou amedrontar. Foi esta força e resiliência que tornou o concelho maior e com vigor. O orgulho veio depois. Sim, não apago, muito menos esqueço, o que ouvi e a balela de muitos até com poderes de decisão.
Hoje é fácil falar de Montalegre. É um concelho com cio em todas as estações. Faça sol, faça chuva; caia neve, caia frio. Tudo é bom. É bom porque tem assinatura. Embora não seja terra perfeita, é grande em alma. O valor está no povo. Nas gentes que a habitam. Que moldam a terra. Que levam a água para o lameiro. Que cuidam dos castanheiros e dos carvalhos. Que segam as leiras e trazem o feno dos campos. Que apanham as batatas à mão. Os que cantam sem telemóvel e sem estar com a preocupação no holofote. Isto já existia. Hoje é conhecido.
Este padre que tanto quero fez-me amar a terra que viu nascer os meus pais. A terra do meu avô Meia Noite da minha avó Caixeira. A terra onde pulei da primeira para a terceira classe num ano só. A mesma que me fez parar na quarta classe por que não tinha idade para ir para Montalegre na carreira. A terra do sotaque. Da vezeira e a do boi do povo. A da ânsia da pouca família que conseguia vir ao Natal e da outra que vinha toda no agosto. Uma espécie de fárria como a descreveu Bento da Cruz, quase a completar 100 anos.
Não é fácil vingar em terra onde, a maioria, só alcança o topo do Larouco. Há tanto, mas tanto, para lá da serra. Isto não significa que não haja grandiosidade do lado de cá. Absolutamente. Quem cá mora, devia ser obrigatoriamente feliz. O problema não está na terra. Está em alguns escaladores de vazio que julgam que a algibeira é fonte de autoridade. O Padre, este padre, ensina e só não aprende quem quer ser cego que o poder do ser humano está na ação. Daí que nunca tenha desistido dela quando o mais fácil era ter zarpado para tantos voos que fez mundo fora.
O corpo envelheceu. Todo ele é marca do tempo. Uma imagem que não me impede de o beijar sempre que estou com ele. O mesmo dele recebi há 10 anos quando uma maleita quase me transfigurou a face. Nunca o esquecerei como não esqueço o telefonema que tive, um dia destes, quando estranhou a palavra que desapareceu. É neste rasgo que sigo o caminho para ser feliz. Onde for. Onde seja.

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