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Os trejeitos da metáfora

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Os trejeitos da metáfora

Voz aos Escritores

2023-01-06 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Já tinha pensado nisto quando, por imperativo académico, escrevi um artigo sobre a estrutura comparativa em Fernando Pessoa, publicado na revista Informática & Educação da Universidade do Minho. O título, que pretendi sugestivo, era «Um parlamento é tão belo como uma borboleta». A análise, de âmbito sintático, cumpriu os seus objetivos, mas deixou-me algumas luzes, ideias pertinentes, que registei em caderno para mais tarde aprofundar. E o momento chegou com a leitura de um livro do último Nobel da Física, Giorgio Parisi, sobre complexidades sistémicas, que incluem voos de estorninhos, ondulações de cardumes e problematização de metáforas: A minha história na Física. Pensar em sistemas, em estruturas organizadas, em «gramáticas» inscritas na natureza, interessa-me. Foi pensando nisso que escrevi o meu recente livro «Gramática das Coisas», que venho divulgando por aí. A minha atenção moveu-se, no entanto, quando Parisi, a propósito de trocas de metáforas entre a Física e a Biologia, referiu o artigo de Alan Sokal «Transgressing the Boundaries: Towards of Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity». Nele, Sokal baseou-se num conjunto de metáforas físicas, sociológicas e psicológicas tão absurdas que seriam, presumia-se, facilmente detetáveis. A verdade é que o artigo foi aceite para publicação e deu, mais tarde, azo a comentários trocistas. Se a apropriação metafórica da vida biológica pela ciência física é suscetível de causar problemas insanáveis, o que pensar da apropriação poética? Os planos são distintos, claro, as consequências epistemológicas muito mais, mas não deixa de ser interessante pesar as transferências de sentido entre os termos comparativos e metafóricos que nos são propostos pelos nossos poetas, e avaliar de que modo os tropos influenciam o nosso sentir e a nossa compreensão do mundo. Disse Fernando Pessoa, no «Livro do Desassossego», que há metáforas mais reais do que gente que anda nas ruas. Compreendo a afirmação ao ler «A rosa de Hiroshima», de Vinícius de Moraes, a «rosa radioativa», a «rosa com cirrose», a «rosa sem nada». Como ver e sentir, de modo tão arrepiante e tão real, a figura da flor naquela explosão tão abominavelmente letal? A explosão, com as suas terríveis consequências, é, definitivamente, mais real do que a perfumada rosa. Em equivalente linha interpretativa se compreende o quanto do sal marítimo são lágrimas de todo um povo, metáfora extensa que contém em si sacrifícios e sofrimento, derrotas e vitórias, toda a gesta coletiva cantada por poetas como Luís de Camões, em «Os Lusíadas» e Fernando Pessoa, na sua «Mensagem». Até aqui, não se vislumbram absurdos e as metáforas resultam evidentes. Se, no entanto, as figuras imaginárias têm mais verdade, mais relevo, como quis Pessoa, como devem ler-se as metáforas do «comboio de corda» e do «balde despejado» atribuíveis ao «coração» (Pessoa), se este é, simplesmente, «uma semente inventada» (Herberto Hélder)? Ainda hoje ando às voltas com as visões comparativo-metafóricas do Álvaro de Campos em torno dos orçamentos, vistos como tão naturais quanto as frondosas árvores, que são realmente naturais, ao contrário do estardalhaço orçamental; e o mesmo para os parlamentos, esses lugares indescritíveis, se comparados ou metaforizados em borboletas belas. Eu sei que o absurdo resulta por vezes muito bem na vida, e, ao que parece, também de forma muito razoável na própria literatura. Pelo que se vai vendo, é tudo uma questão de lógica (na ciência o absurdo paga-se), ou de gosto. Eu poderia discutir o critério do «gosto» como critério fundamental da apreciação estética (é, aliás, o meu critério), mas que há absurdos difíceis de engolir, lá isso também há. Vale-nos, no âmbito literário, a sua inocuidade. O que, não sendo mau, já é muito bom.

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