Automatocracia
Voz aos Escritores
2025-02-07 às 06h00
Disse ele: "Esse discurso é capcioso e anfibológico". Oh la la, pensei, ora cá estão duas palavras para fritar os neurónios. Capcioso? Onde residiria o ardil? Ou pretenderia sugerir uma adjetivação mais elegante, talvez próxima do ato de cativar? Não é comum esta palavra, muito menos a relativa à anfibologia. À primeira escuta, salta-se para a morada anfíbia, ora aquática, ora terrestre, mas é só à primeira escuta, porque a palavra remete definitivamente para a ambiguidade. É anfibológico o que é ambíguo, e o que o meu interlocutor queria afirmar na sua sabedoria era que o político fulano de tal era um manhoso, daqueles que cosem as palavras em remendos sintáticos cheios de florzinhas que seduzem e cheiram muito bem. No campo político, ser ambíguo é ser o suprassumo da sedução. Ai que bem, pensa o eleitor, arrebatado, sem se dar conta da duplicidade significativa. E não adianta que, daí a uns miseráveis segundos, o outro lado da significação arreganhe os dentes e se atire como gato a bofe. Na linguagem política, mais que recurso de estilo, a anfibologia é truque a tender para o rasteiro, jogo duplo para aniquilar o distraído interlocutor. Perdido em subentendidos, em ditos e entreditos, em implicaturas que o próprio locutor por vezes desconhece, em implícitos e pressupostos impostos pelas palavras em uso, em geral metodicamente ensaiadas, o interlocutor, pobre coitado na selva discursiva, entende-se ao comprido e adormece na onda. Quando eventualmente se apercebe, já é tarde: o mar da sedução envolve-o e abocanha-o.
E nem referi a ironia, artifício linguístico, literário e até retórico, usado comicamente ou com intuitos mais perversos contra o interlocutor incauto que, bastas vezes, ou quase sempre, se vê incapaz de interpretar discursos de ganga vestidos do avesso. Os malandros usam a ironia porque "sabem" que há quem seja surdo de ouvidos e de mente, incapaz de ver e sentir o avesso informativo. A desculpa, essa, filha da finura e da espertalhice, está lá, sempre especada à espera da oportunidade: "ó pá, mas tu não viste que estava a ser irónico?". E pronto, assim se ganha na retórica política. Cá para nós, os mais atentos às complexidades linguísticas, bastariam até as idiossincrasias morfológicas e sintáticas deste português europeu, cheio de sujeitos nulos e indeterminados, de complementos de núcleo ou de outros constituintes, suscetíveis de nos pôr os neurónios a verter óleo por todas as sinapses. Um dia destes, surgiu-me a seguinte frase num texto sobre animais: "Os rinocerontes protegem os filhos dos leões." Quem, a meu lado, leu também a frase, achou graça e ficou a dissertar sobre a irmandade e o amor animal, do tipo "ai que coisa fofa, um rinoceronte a cuidar do leãozinho..." Eu, que leio sempre com olhos duplicados, lá me precavi, pois sei que rinocerontes fogem dos leões como todos fogem no reino animal, e que tratam é de proteger os filhos das leoninas investidas. Leitor amigo, faça como eu, fique muito atento aos leões e aos melífluos da língua que medram neste mundo. Já sabe como é: homem prevenido vale no mínimo por dois.
21 Março 2025
14 Março 2025
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