Ettore Scola e a ferrovia portuguesa
Escreve quem sabe
2019-03-04 às 06h00
O sol da manhã traz sorrisos. Estou na varanda, chávena e portátil na mão, sinto a brisa na face, ouço sinos e chilreio de pássaros. Miro o horizonte e sintonizo-me com a natureza. Ando a reler “Les Enfants Sauvages”, de Lucien Malson, livro inspirador do filme “L’Enfant Sauvage d’Aveyron”, de François Truffaut. Reflito sobre o conceito “valor” e de que forma ele é subjacente ao comportamento humano, às nossas organizações e sociedades.
Há já uns anos, juntamente com uma colega e em trabalho, fui convidado a participar num casamento em Chennai, no sul da India. A duração do evento seria de três dias e teria a participação aproximada de mil convidados.
A cerimónia teve início às 5 da manhã e a longa viagem desde Bangalore fez-se por terrenos sujos e baldios, à mercê de um guia já conhecido que nos acompanhava diariamente. À chegada, exausto, propuseram-me tomar banho numa pequena sala comum, decrépita e sem qualquer iluminação, com baldes cheios de água amarelada e isenta de chuveiro ou toalha lavada. Naquele momento, fiquei um pouco assustado, sem palavras, mas agradeci a gentileza daquele gesto. Recordo-me, de seguida, não só de vestir o fato apressadamente, mas também de não tomar qualquer banho. Para além deste episódio curioso, preservo três momentos daquele evento. Em primeiro lugar, a arte Mehndi, como se denomina a tradição milenar de ornamentar o corpo, em que a família da noiva decorava a sua pele com desenhos elaborados, cheios de beleza e significado. Em segundo lugar, fruto de uma decisão entre os pais cujas castas eram idênticas, a noiva casar-se-ia com um primo direto. Em terceiro lugar, o casal ofereceu aos convidados um tupperware que continha um pequeno coco.
Nesta varanda, penso nos conceitos de «ética» e «moralidade», nas particularidades das diferentes culturas e sociedades. Recordo aquela Índia maravilhosa, as suas infinitas cores e os seus valores. Revejo-me nos conceitos apresentados por Malson e tomo cada vez mais consciência de que os valores não são universalmente válidos, já que variam tanto sincrónica como diacronicamente de cultura para cultura.
Penso também na «deontologia», nas organizações nacionais, e, especificamente, nas empresas retalhistas. Não sei se alguma vez pararam para analisar a visão, missão e valores de algumas empresas que visitam, provavelmente todos os dias. Eu já fiz esse exercício. Se, por um lado, reparei que a visão e missão de praticamente todas elas consiste em servir a sociedade através da criação de valor económico e social, noto que preconizam alguns valores, nomeadamente a confiança e a integridade, a ambição e a inovação.
Após uma análise da missão e visão das maiores cadeias de retalho, depreendo que o retalho da atualidade se preocupa com variáveis como comprar a custo reduzido, vender a um preço mais elevado e obter, assim, a maior margem operacional possível. Se, por um lado, custos e margem são realmente preocupações cruciais na sobrevivência de uma empresa, acredito que existem algumas lacunas e oportunidades de melhoria no campo do conhecimento e integração dos seus valores pelos colaboradores. Infelizmente, sinto que, por exemplo no serviço pós-venda, existem falhas graves de atendimento que não se coadunam minimamente com valores de integridade, compromisso, seriedade ou qualidade do serviço.
Ainda que, pessoalmente, não me reveja em todos os valores e comportamentos da cultura indiana, serei sempre grato pela oportunidade que me deram de a visitar, conhecer os seus valores e criar novos laços de amizade. Se, por desconhecimento, não entendi o simbolismo de um coco, depois de uma breve pesquisa sei que se denomina por Shri-Phal. "Shri" significa Laxmi / Deusa da Riqueza e Shri-Phal significa, então, o fruto de Laxmi. A quebra do coco, realizada tipicamente no final de um qualquer evento importante, simboliza o início de algo novo, de uma vida próspera, cheia de valores, de riqueza e sem fome, e é incluído normalmente nos rituais hindus como plena gratidão aos seus deuses.
Concluo que o desconhecimento cultural e axiológico da minha passagem pela Índia se pode estender a outras sociedades e até mesmo às organizações, onde não raras vezes impera a ignorância e os valores pessoais não se coadunam com os organizacionais. Considero, por isso, essencial que os cola- boradores procurem proativamente conhecer a missão, a visão e os valores da sua própria organização, mas também que as empresas possibilitem esse conhecimento através da criação de um código deontológico e de ações internas de informação e sensibilização. Só assim poderão responder à nobre função de ajudar no desenvolvimento pessoal e profissional, potenciarão o sentimento de pertença e de identidade empresarial e poderão prestar um serviço de excelência aos seus clientes em consonância com a sua própria marca.
*Com JMS
10 Outubro 2024
08 Outubro 2024
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