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O Vale da Morte

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

O Vale da Morte

Voz aos Escritores

2023-12-15 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

A Palestina é uma terra de escombros, destroços da guerra que não cessa, a poeira mórbida paira numa neblina cinza, tudo é plúmbeo, tudo é catástrofe, o fumo volteia as pedras negras e empoeiradas dos edifícios bombardeados, sob as quais jazem milhares de corpos impossíveis de resgatar, cheira a morte, cheira a desgraça, cheira a sujo, escasseia a água que lave vivos e mortos, o lixo amontoa-se, montanhas de entulho vizinhas das ruínas, a ladearem as tendas dos que ainda estão vivos, casas improvisadas de quem tudo perdeu, tectos de pano e plástico, fogueiras minguadas que cozinham o parco sustento, quase não há comida que mate a tirania da fome, gente de olhar escuro e amedrontado, andrajosa, um território de mendigos de mãos negras estendidas à esmola que tarda, à ajuda humanitária que demora, gente forçada pela guerra à humilhação dos pedintes, velhos que mal caminham, arrastados na idade e no absurdo bélico, crianças roubadas de infância, mulheres enroladas nos trapos enodados que lhes restam, da cabeça aos pés, cabelos aprisionados que nem em tempos de guerra saboreiam o vento, aqui a liberdade não voa nas melenas que se impõe cobertas, aqui a autonomia não existe, gente cativa da religião, dos mandatários, dos poderosos financiadores enriquecidos pelo petróleo e o comércio de armas, gente cativa da disputa da terra, a terra que vale mais que as vidas dos que nela ainda sobrevivem, vale mais que os milhares trucidados, aqui, no hospital, a sinfonia da guerra é um requiem ininterrupto, afortunados os que morreram no início dos ataques, antes a morte do que esta sorte, sou médica sem fronteiras, não deveria escrever estas afirmações, contudo, é o que sinto, é a minha impotência que me desboca, o cansaço e a fome que me quebram o discernimento, a tontura da minha mente que não mais suporta os estrondos dos ataques, os gritos de desespero dos feridos, as súplicas por ajuda, que ajuda, Senhor, se não há medicamentos, nem espaço para tantos corpos a esvair-se, nem instrumentos médicos, ali uma menina de seis anos grita de dores, tem várias fracturas, suturei-a sem anestesia, ali um menino de três anos ferido que chama pela mãe morta num bombardeamento, ali um pai abraçado ao filho morto, pietá masculina de carne e lágrimas humanas, ali dezenas de corpos estendidos no pavimento emporcalhado, vermelho do sangue inestancável dos feridos, sangue também nas paredes, sangue também nas nossas batas, não há tempo para mudá-las, não há tempo para lavá-las, ali cadáveres lado a lado com lesionados e moribundos, não há tempo para retirá-los, não há mãos vivas para tantos mortos, na promiscuidade abundam as doenças, a hepatite, a meningite, a disenteria, o cheiro dos mortos a irmanar as imundices dos vivos, o hospital é um esgoto a céu aberto, ali amontoados pensos e ligaduras, papéis sujos de fezes, baldes de urina, e eu, desnorteada, questiono-me, quem acudo, quem devo salvar, os blocos operatórios indisponíveis, a luz que falha e nos atira ao abismo da escuridão, o breu que eleva o pavor e a insuportabilidade dos cheiros, ali mulheres em trabalho de parto, mães que dão à luz nas trevas, a vida a par da morte, ali uma parturiente que me chama, me diz que é cedo, é cedo para nascer e para morrer, sete meses de gestação, os desmoronamentos da noite anterior espoletaram-lhe o trabalho de parto, dique amniótico e rio de lágrimas, tento acalmá-la, garanto-lhe que irá correr tudo bem, minto-lhe, os prematuros morrem por falta de meios, logramos transferir alguns na semana passada para outro hospital, outros pereceram, passarinhos de pele e ossinhos sem ninhos, agora quase não há ambulâncias, veículos estancados por falta de combustível, outros destruídos pelos ataques aéreos, agora quase não há hospitais, outrossim arrasados nos trovões do armamento, dizem que os terroristas se escondem aqui e que usam a população civil como escudos humanos, dizem que os homens do hamas habitam nos túneis dos hospitais, dizem que os terroristas roubam a gasolina que alimenta os geradores dos hospitais e as ambulâncias, dizem que os bombardeamentos não cessam enquanto não forem libertados todos os reféns raptados nos kibutz no passado sete de Outubro, e enquanto falam, enquanto organizações internacionais negoceiam nos corredores imaculados da diplomacia engravatada, milhares morrem por dia, outros milhares são amputados de braços, mãos e pernas, órfãos decepados de pais, pais amputados de filhos, avós cortados de netos, aqui, a morte empanturra-se em festins pantagruélicos e embebeda-se de sangue dos inocentes, ninguém sairá ileso deste conflito, o sofrimento reina neste vale da morte, estou exausta, tenho de descansar, duas horas, preciso de duas horas, encolho-me a um canto, estendo-me no chão sobre um cobertor esfiapado, enrolho os ouvidos com pedaços de algodão, ensurdeço-me do coro dos defuntos, fecho os olhos e relembro os meus colegas, médicos, enfermeiros, voluntários, ceifados da vida no inglório labor de salvarem desconhecidos, homens e mulheres que não mais habitam o vale da morte, não sei se me juntarei a eles amanhã, só sei que preciso de duas horas, apenas cento e vinte minutos, depois, regresso à batalha, porque as guerras não acabam.

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