Correio do Minho

Braga, sábado

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O Príncipe

Cidadania ou o atrevimento da ignorância (2)

O Príncipe

Ideias

2025-03-18 às 06h00

João Marques João Marques

Escrevo este texto nos primeiros momentos em que se assoma o vazio da certeza de um adeus infinito. Só na morte alheia pode, infelizmente, o ser humano experienciar a eternidade.
São estas as primeiras horas que sucedem ao choque da notícia, à tristeza da confirmação e ao convívio enlutado dos muitos, tantos, que se juntaram para lhe tributar uma vida que lhes foi também dedicada.
Como é estranha a morte. Como é absoluta, inapelável e desumana. Como nos deixa sem ação ou reação plausível, como nos rebaixa à condição de bichos sem qualquer privilégio sobre os ditos irracionais. Como é puramente democrática e nisso paradoxalmente totalitária. Como é previsível na sua imprevisibilidade.
E, apesar de tudo isso, apesar de ser a mais fiel companheira da vida, como é, ao mesmo tempo, a sua mais traiçoeira inimiga.
É agora que, findas as exéquias fúnebres, mergulhamos no confronto verdadeiro com a dor do fim, a dor do nada, a dor do tudo que não mais poderemos partilhar com ele.
Com a partida do Miguel morre um pedaço de nós. E morre duplamente.
Finda o privilégio do convívio com um homem bom, muito bom. Não mais ouviremos a sua tonitruante voz, cuja força ecoava a inteligência das palavras, a ponderação dos conselhos e a assertividade dos pensamentos.
Mas fecha-se também um capítulo das nossas vidas que apenas podia ser contado pelo Miguel. Como nos via, como se nos dirigia a palavra, como nos avaliava e estimava. Foi com ele essa parte de nós que jamais recuperaremos. Também um pouco de nós jaz ao seu lado e também nós não mais voltaremos a ser quem éramos.
Para a maior parte dos que o conheciam, o Miguel era um político, um homem público, uma imagem de alguém. Para mim foi muito mais.
Sem o Miguel dificilmente estaria onde estou hoje. Sem o arriscado convite que me fez para com ele trabalhar no Ministério da Administração Interna, nos idos de 2012, a pessoa que aqui escreve seria hoje alguém muito diferente.
Foi graças ao risco que assumiu em dar uma oportunidade a um imberbe jurista de duvidosa qualidade, a um mini-político de província, a um produto muito inacabado de homem que permitiu que eu me tornasse no que sou hoje.
O Miguel deu-me uma vida. E essa vida deu-me uma família, uma carreira e, com elas, a incomensurável gratidão de quem tanto lhe deve.
Quero acreditar que o fez conscientemente e que em mim terá visto qualquer coisa diferenciadora, embora saiba que assim não foi. Não deixo, por isso, de me enganar a mim próprio e de achar que sei que por pouca fé que em mim tivesse nessa altura, a sua crença terá crescido ao ver-me crescer.
Foi graças a ele, aos inúmeros ensinamentos que colhi, aos não menos numerosos desbastes que fazia nos discursos que lhe preparava, ou às infinitas correções nos diplomas que tentava alinhavar que percebi o que era ser um Homem de Estado. Um político de mão cheia que via a politiquice a léguas e dela se distanciava com a graça de um príncipe e a estatura de um senador.
A forma como colheu e manteve o respeito e admiração dos que sob a sua alçada serviram o país, a começar nas forças e dos serviços de segurança e a terminar nas equipas políticas que foi escolhendo, dão boa nota da elevação e sentido de serviço que empenhava na ação política.
A transversalidade político-partidária da homenagem sentida a que todos puderam assistir no passado sábado traduz fielmente uma vida plena de convicções, mas não menos preenchida pela tolerância.
O que fica é, portanto, a marca dos grandes. Um legado, uma forma de ser e estar que apela ao melhor de cada um de nós e nos convoca a seguir o trilho do seu exemplo.
O Miguel era ainda um leitor atento destas pindéricas crónicas e repetidas vezes o demonstrava nos muitos almoços que fomos partilhando. Citava-me e mostrava que me tinha lido. Como que timidamente aprovando o meu trajeto e validando a nossa amizade.
Quis o destino que muito recentemente não pudéssemos almoçar uma última vez, como várias vezes fizemos ao longo dos anos. Essa mágoa levo-a como um convite.
Um convite a um não crente que em algo tem de acreditar.
Um convite a que não me esqueça que temos encontro marcado. E que por isso é bom que não chegue a esse encontro com meias-desculpas sobre o porquê de não ter vivido a vida na sua plenitude.
Homenageá-lo-ei vivendo e tentando, ainda que seguramente falhando, seguir o seu exemplo.
Até sempre Miguel! Obrigado por tudo. Vemo-nos por aí…

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