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Voz aos Escritores
2021-01-29 às 06h00
Ando por aqui a matutar nas implicações de certos pontos do Acordo Ortográfico de 1990 e centro-me em toda a discussão sobre grafias, o que implica, claro, os sons que saem multifacetados das nossas muito humildes bocas.
Não é fácil situarmo-nos na discussão, porque isso implica um grande conhecimento linguístico e da história da própria língua. Andava eu atrás de um «ç» inicial de palavra, em português contemporâneo, o que, evidentemente, não encontrei. Desemboquei no espanhol Zapatero, que até foi ministro e tudo, e soube o que já desconfiava, isto é, que a forma «çapato» é antiga em castelhano e português, que há dicionários antigos que registam assim a palavra, e que até o çapateiro de Trancoso, o célebre Bandarra, merece esta mesma forma num livro de 1603, escrito por Joam de Castro, com o título «Paraphrase et concordancia de alguas profeçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso». O registo é, com certeza, mais antigo, pois já no século XV o nosso José Çapateiro andou, acompanhado do linguista Abraão de Beja, pelas índias, e não consta que torcesse o nariz à forma como escrevia o nome.
Aquele «ph» da paráfrase, o «ç» das profecias e, até, a forma latina «et» provam-nos, se houvesse alguma coisa a provar, que as grafias, sendo convenções, são epocais, e que marrar demasiado em argumentos «etimológicos» pode dar-nos algumas dores de cabeça. Como não ficar com elas, se nos lembramos de formas como monarchia, rachítico, physica, symphonia, grypho, hypotheca, systhema, e outras do mesmo tipo, palavras que nos atingem os olhos de tão estranhas que já nos são?
Fiquei com o «ç» inicial na cabeça, pensando no momento em que teria sido substituído pelo «s», e fixei-me naquela vírgula debaixo do «c», que gramáticas e dicionários etiquetam como sinal diacrítico, nome ou adjetivo, e que aparece, hoje, na nossa língua a par de outros diacríticos, como o til e os acentos agudo, circunflexo e grave. Sabemos que se trata de sinais gráficos cuja função é a de distinguir ou destacar a modulação das vogais ou a pronúncia de determinadas palavras, conferindo-lhes novos valores fonético-fonológicos.
Talvez não nos apercebamos rapidamente do extraordinário valor gramatical destes sinais, mas a verdade é que alteram radicalmente o significado das palavras. Imaginem, por exemplo, que coço o nariz e falo em cocó. É verdade que entre o nariz e o cocó há uma relação muito estreita, pois este fede mal e aquele sente, ó quantas vezes, a forçada demasia. Se coço, entretanto, o sofrido apêndice, há razões de sobra para isso. E atenção: nem sei se o fruto chamado coco origina muitos gases, pois, no limite, coço, coco e cocó poderiam, na nossa prodigiosa mente, ter muito mais do que relações gráficas. Digamos que poderiam ter relações criticamente sinestésicas. Não sei se sinestesias deste tipo são suscetíveis de nos remeter ao hospital, onde nos estenderiam, na melhor das hipóteses, numa maca, daquelas que não têm cedilha, pois nessa ninguém se deita. A maça é, com efeito, objeto contundente, e acreditem que a pungência, estando na dureza do objeto, está, e de que maneira, na cedilha. Valha-nos a utilidade purgatória da maçã que, segundo rezam as crónicas, cura galos e galinhas, principalmente os que surgem inopinadamente na testa.
Entendo, neste contexto semântico, quem troca chica por chiça, baco por baço ou troca por troça.
Na frase ou no texto, comutações deste jaez podem causar uma nova guerra de Troia, e pôr em causa o casamento de Peleus e Tethis, o mesmo que dizer, do Tónio e da Maria. Atenção, pois, a estes sinaizinhos, que fazem pensar em caça onde apenas se vê caca.
26 Fevereiro 2021
19 Fevereiro 2021
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