Indispensáveis são os bracarenses
Voz aos Escritores
2024-06-21 às 06h00
Nunca fui de grandes medos, exceto de centopeias nos meus tempos de menino. Nos momentos mais difíceis da minha vida, espantei-os à bordoada, que isto de derrotar-se sob emoções assim tão básicas não alimentava o corpo nem alimenta o espírito. Um dia recebi-o do Quixote, naquela tríade bem famosa, que contém além de si a ignorância e a injustiça. A ignorância mostrou-se sempre presente em atos e omissões, e fiz tudo para me distanciar dela. A injustiça, dizem que relativa, sempre me acenou a mão. As minhas incapacidades de juiz ineficiente tornaram-na imperativa. Faço o que posso no que me concerne, e entristeço na sua simples visão. O medo, esse, compete-me domá-lo. Há muito tempo, registei uma afirmação de Fernando Pessoa no «Livro do Desassossego», que me deixou a pensar. Disse ele que «correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente - perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza».
Registei naquele momento a importância de nos concentrarmos nas nossas sensações e nas nossas emoções em momentos de alto risco, seja físico ou não, sob pena de ataques de pavor. Poderia ter escrito, como o fez Al Berto, um livro sobre o medo, tão evidentes me surgiram as palavras «medo» e «pavor». Há algo que sei e que me deixa mais ou menos descansado. E nisto estou contra o Neruda: não tenho medo do mundo, nem de água fria, nem da morte. Nisto, não sou igual a todos os mortais, quando muito sou igual a boa parte deles. Prefiro, aliás, a água fria à quente, e a morte que me acene sorridente quando bem lhe aprouver. Um bom cristão alegra-se sempre na estocada final, há hinos à sua espera e um Aleluia que rejubila. Carlos Drummond de Andrade não se coibiu de se afirmar medricas. Diz ele que temos e somos educados para o medo, que este produz carcereiros e poetas, tudo numa harmonia incompreensível para quem verdadeiramente não se sente. Velhos cristalizados, herdeiros amedrontados, todos dançam no baile dos medos. Talvez a sociedade moderna se aperceba assim, mas eu agarro-me à gravata do pavor.
É curioso como em língua latinas «medo» e «pavor» se impuseram de formas tão distintas. Por que razão temos, nós e os espanhóis, «medo» ou «miedo», enquanto os franceses tremelicam com um «peur» que li bem sublimado no poema «Terreur» de Guy de Maupassant? Danças e andanças das palavras pelas línguas nossas irmãs, de entre as quais se destaca o romeno, com o seu «timor», origem latina do temor. «Medo», «temor» e «pavor» denotam, nas línguas referidas, o mesmo sentimento, mas matizam, numa escala não facilmente explicável, algumas diferenças: em português, não é exatamente igual dizer-se «tenho medo», ou «sinto pavor». Paralelamente, particípios-adjetivos como «amedrontado» ou «apavorado» também não afinam pelo mesmo diapasão significativo.
O italiano «paura», irmão do «peur» francês, ambos descendentes do «pavor» latino, provam o extraordinário fenómeno da divergência fonética, a par da divergência semântica. Porque é mais do que suficiente, fiquemos com o nosso «medo», sublimado nos dias correntes pelas ameaças verbais e demais bombásticas vindas de vários recantos do mundo, em fórmula «bullying», cínica e sádica, sobre a dor dos desamparados deste mundo.
Que importam, aliás, as palavras, ao ser humano que fenece de fome ou de bombas que estilhaçam de sadismo? Somos educados para o medo ou para a cobardia? A História ensina-nos tanto, mas não aprendemos nada. Eu sei que não é fácil inflar o peito, impor coragem, mostrar verticalidade. Mas sei que a cobardia não é a solução. A História já nos ensinou isso.
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