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O legado de Francisco

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O legado de Francisco

Ideias

2025-03-20 às 06h00

Bruno Gonçalves Bruno Gonçalves

Acredito que os melhores elogios não devem ficar guardados para momentos de saudade, mas sim que sejam partilhados com o outro sempre que possível. E depois de várias semanas em condição debilitada, sob observação permanente, tudo indica que o estado de saúde de Jorge Mario Bergoglio melhorou de forma considerável - permitindo-me, assim, um reconhecimento justo e atempado da pessoa que apelidamos de Papa Francisco.
Desde que assumiu formalmente a liderança da Igreja Católica, corria o mês de março de 2013, que o pontífice argentino sinalizou uma nova era. A simplicidade, humildade e tom amigável tornaram-se a sua poderosa imagem de marca: reaproximou a Igreja tanto da sociedade, como do ideal humanista e solidário das suas raízes, contrastando com a postura mais austera de Bento XVI, o seu antecessor imediato.
Contudo, não será apenas pelo estilo que ficará na História. Ao longo dos últimos 12 anos, Francisco não hesitou em desafiar preconceitos ossificados pelo tempo - e não pela razão - para promover uma Igreja mais democrática e inclusiva. Será sempre associado à abertura e tolerância crescentes no meio eclesiástico, respetivamente, sobre o papel das Mulheres na sociedade e os direitos da comunidade LGBTQ+.
Mas se há algo que define o Papa Francisco é a incansável proteção dos mais pobres e combate às desigualdades sociais. Da sua bússola moral emana uma visão da Igreja Católica que deve representar, acima de tudo, solidariedade. Não é por acaso que Jorge Mario Bergoglio escolheu o seu nome papal em homenagem a S. Francisco de Assis, figura católica associada à pobreza. É um reconhecimento do valor de todos, incluindo quem se encontra nessa situação.
Na sua encíclica Fratelli Tutti, Francisco postula a necessidade de criar uma economia mais justa e critica o neoliberalismo. Passo a citar: “nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames dos mercados financeiros, «devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos».”.
No fundo, Francisco alerta-nos para a tendência contemporânea (negativa) de subjugar o princípio da igualdade entre pessoas à máxima da liberdade económica. Nos finais do século XIX, como propôs o Papa Leão XIII na encíclica Rerum Novarum, a Igreja deveria posicionar-se em favor de um equilíbrio virtuoso na relação entre trabalho e capital. Aquilo que diz Francisco, em inícios do século XXI, é que a balança está fortemente inclinada em benefício dos detentores do capital.
O raciocínio crítico estende-se à vertente ecológica, onde denunciou que a exploração de recursos naturais favorece, com frequência, um pequeno grupo de privilegiados, enquanto as suas externalidades negativas - como o impacto na saúde decorrente da poluição - recaem sobre os mais pobres. Nesse sentido, a sua voz foi também importante para sensibilizar sobre a necessidade de transitar para um sistema sustentável em todas as dimensões (económica, social, ambiental).
Em simultâneo, por diversas ocasiões, Francisco enfatizou também a necessidade de criar sistemas tributários mais progressivos e justos, capazes de assegurar que os ganhos individuais servem uma lógica comunitária. Antes da sua saúde se deteriorar, o Papa recebeu no Vaticano uma iniciativa sobre a tributação de mega-fortunas, na qual também se incluiam o Presidente do Brasil, Lula da Silva, e o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez.
Não é propriamente uma surpresa: Francisco já se havia manifestado de forma crítica contra as práticas fiscais desleais por parte de grandes multinacionais ou de multimilionários, associando o pagamento de impostos a uma obrigação moral. Afinal, a fuga fiscal retira aos Estados os recursos necessários para investir em políticas sociais e no bem-estar da população mais pobre, alimentando as desigualdades.
Este é um debate que tem ganho tração a nível global, com resultados práticos. No seguimento de uma iniciativa a nível da OCDE, mais de 140 países subscreveram um acordo para estabelecer uma taxa mínima global de impostos para as grandes multinacionais. O próximo passo, sob proposta do Governo de Lula da Silva e já referido nas conclusões da Presidência brasileira do G20, é replicar essa medida para as grandes fortunas individuais.
Tendência esta que só não é mais animadora devido à chegada de Donald Trump à Casa Branca. O Presidente dos EUA - entre a barragem de ordens executivas que assinou desde a entrada na Sala Oval - determinou a impossibilidade do acordo global para taxar as multinacionais americanas. Mais uma evidência da influência tremenda que a oligarquia de empresários das grandes tecnológicas, com Elon Musk à cabeça, exerce sobre a democracia dos EUA.
Para bem do Mundo, seria desejável que o efeito de Trump fosse passageiro - e o do Francisco, duradouro.
É certo que as posições do atual Papa não agradam a todos. Os setores mais reacionários da Igreja Católica rejeitam a sua abertura à mudança e o rumo trilhado nestes últimos 12 anos. Mas se há motivo pelo qual este Papa ficará na História, será pela coragem de enfrentar as injustiças estruturais do mundo moderno, (re)colocando o compromisso em combater as desigualdades no centro da doutrina católica.

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