IFLA Trend Report 2024
Ideias
2020-05-11 às 06h00
Debruçado na janela, miro o jardim. A tarde está fria, não vejo ninguém no passadiço encharcado. Há, no céu, cinzentos esparsos: «degradés» perfeitos desenhados à mão e a grafite, novos matizes em cada movimento. O ritmo das nuvens dança em padrões fractais, embaladas pelo vento, aspergindo com sopros leves os malmequeres que sorriem na terra. Ladeando-o, as árvores não mostram particular interesse no que outrora foi interessante. Permanecem simplesmente ali, impávidas e serenas, embrulhadas em finos prantos de água. O canto do melro preto e o som do sino triunfam impantes, finalmente sós, perante o silêncio tumular das redondezas.
Aqui me encontro a ler e a escrever, levemente curvado sobre a confortável cadeira que me foi oferecida. Caminho no passado, fixo o branco digital, na procura da forma mais adequada para começar este texto. É curioso, mas em duros tempos de confinamento, dou por mim constantemente a folhear velhos livros, a reler alguma poesia e a relembrar romances que descansam na teia do meu pensamento. Recordar bons autores, que merecem reerguer-se das nossas estantes é, para mim, a forma mais sábia e extasiante de viver estes dias. A leitura, nomeadamente a poesia, dá-nos longas e articuladas asas, capazes de suportar com resiliência os momentos com que a comoção abruta pretende, por vezes, dominar-nos.
Hoje o dia começou enfadonho. Pela manhãzinha, fiquei desapontado com o telejornal. Não encontro epítetos suficientes para classificar algumas notícias. Destacou-se o recomeço do futebol profissional, contrariamente ao de outros escalões e até de outras modalidades, mas também o regresso conturbado às aulas dos mais pequenos. Salientou-se uma problemática relacionada com as creches e colégios em Portugal, impulsionada pela ACPEEP (Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular). Redobrei a minha atenção, ao relatarem ainda uma breve notícia relacionada com o retalho, infelizmente descrevendo as dificuldades vividas no setor livreiro, à semelhança de tantos outros.
Permitam-me afirmar que os destaques de hoje me causaram algum descontentamento. Mesmo perante uma pandemia terrível, entristece-me que a sociedade continue a perpetuar a sua constante obsessão pelo futebol profissional e sua eterna glorificação em detrimento de outros escalões e desportos. Paralelamente, desagrada-me a forma como foi elaborada a falaciosa notícia relacionada com a pretensa agonia de creches e colégios privados, sem nunca atentarem no real sofrimento e vulnerabilidade de muitas famílias, que tentam, muitas vezes, reajustar a sua nova realidade de forma a cumprirem de forma honesta as suas obrigações. Reforço aqui a notícia sobre as creches e colégios, mas projeto-me noutros tantos serviços onde o instinto de sobrevivência se sobrepõe por inteiro aos valores éticos e morais e onde a falta de empatia e compaixão são bem visíveis.
Recordo uma leitura muito interessante sobre espírito de liderança, ética e instinto de sobrevivência. Aqui, não só se destacava a importância da tomada de decisão em tempos de crise, mas também em tempos de pandemia. Enaltecia-se ainda que tudo o que for decidido hoje será recordado à posteriori e, naturalmente, terá os devidos impactos a médio e longo prazo. Vejo políticos, empresas e gestores de grandes marcas com a obrigatoriedade de decidir. Mas decidir de um modo reativo, formatado, e sem ter em consideração o outro e os seus direitos, poderá ter, certamente, as suas consequências. Acredito, sinceramente, que muitos serviços e marcas não irão permanecer ou renascer, fruto da sua indiferença e atitudes estritamente egocêntricas num momento tão complexo.
Regresso à minha cadeira e miro novamente o jardim. Observo a leveza da chuva a cair. Quero acreditar na recente afirmação do Sr. Presidente da República: “Zelarei, na medida dos poderes constitucionais que me são atribuídos, para que os dias do livro se possam reerguer e renovar”. Oxalá algumas das suas iniciativas e palavras sejam demonstradas doravante com boas decisões na área da cultura. Anseio que o retalho de livros sobreviva e se reerga, tal como uma flor que brota do solo árido e em condições absolutamente adversas. Valha-nos a leitura, nomeadamente a da poesia, para mantermos a mente sã e salva de tanta insensibilidade que por aí abunda.
*com JMS
11 Outubro 2024
11 Outubro 2024
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