‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações
Voz aos Escritores
2020-05-02 às 06h00
Há setenta e cinco anos, a 30 de Abril de 1945, as tropas soviéticas driblaram as balas dos mancebos germânicos, imberbes soldados à força forjados, carne para canhão, as sobras de um exército nazi arruinado, cachopos de ouvidos emprenhados, quereres manipulados pelo glorioso império do Führer de louvores suásticos empanturrado, império destronado pelo qual pelejavam, mal sabiam manobrar as armas que a custo apontavam. As tropas soviéticas ziguezagueavam labirintos de escombros fumegantes, Berlim perecia entre as cinzas num enormíssimo despojo de guerra, a capital do logro império sucumbia após seis anos de um conflito mundial que na sua voracidade bélica deixara um rasto de sangue, dor e agonia, engolira milhões de seres humanos e despedaçara outros tantos, sobreviventes que se arrastavam pela vida, curvados pelos pesos do sofrimento, da morte, das acutilantes memórias da fome e do desenraizamento.
As tropas soviéticas depararam-se com o búnquer de Adolf Hitler, o chanceler que no derradeiro mando de prepotência negava a rendição e entregava os corpos dos berlinenses às balas do inimigo, “O povo alemão tem o fim que merece”, sentenciou, na doentia soberba, na estapafúrdia soberania. No interior do búnquer pairava a morte assassina e suicida. Corpos de seis crianças jaziam na placidez da inocência, a brancura angelical cobria-lhes a tez de seres supremos aos olhos da eugenia nazi. Os sedativos e as cápsulas de cianeto, metidas nas boquitas semiabertas pela mão da Medeia nazi, retiraram daqueles rostos serenos o esgar da morte espantada de infantes roubados da vida por quem lhes dera a vida. Magda Goebbels, a figura modelo da mãe alemã, decidira que o Mundo sem o seu Führer seria um lugar indigno para os filhos.
Joseph e Magda Goebbels protagonizavam o casamento idílico, o exemplo da família numerosa, a família feliz e abençoada que por todos os alemães devia ser copiada, ainda que ele fosse o oposto do estereótipo nazi, um homem sem graça, tarreco, crânio alienígena, coxo e de pé boto e ela escanzelada, sorriso postiço e sempiternas olheiras de pó-de-arroz acamadas, sombras das inconfessáveis canseiras e dos adultérios do marido, fiel seguidor de Adolf Hitler, o crânio de toda a nazi encenação que maquilhava a podridão. O casal de fachada, numa patológica subserviência, num fanatismo maníaco, seguiu Hitler e Eva Braun no corredor da morte, assassinaram os filhos e suicidaram-se. As tropas soviéticas afirmam ter encontrado no búnquer os cadáveres de Adolf Hitler e de Eva Braun, a amante fiel de laivos caninos, Julieta perdida de cegos amores, legitimada mulher do Romeu ditador a escassas horas de comungarem estentores naquele jazigo de horrores.
Muitas teorias correram sobre a morte do ditador, conjecturas que duvidavam do seu cobarde suicídio no búnquer de Berlim no dia 30 de Abril de 1945, hipóteses que aventavam a fuga do casal Hitler para a América do Sul, terreno fértil no germinar de novas levas de nacionais-socialistas, países que acolhiam fugitivos nazis escapados da justiça e dos processos de Nuremberga, como Josef Mengele, o Anjo da Morte, carrasco de milhares de inocentes nos campos de concentração, vítimas das macabras experiências “científicas” em prol da tal eugenia nazi que deificava o ideal do ser humano no homem ariano, a espécie suprema da raça transposta no povo germano, homens e mulheres imaculados, altos, loiros, olhos claros, corpos torneados, aptos a procriarem descendentes perfeitos que o império honravam. Os “imperfeitos” significavam estorvo e custo pesado para o Estado, “imperfeitos” usados como cobaias em mais experiências “científicas”, “imperfeitos” imerecidos da vida, em instituições misteriosas degredados e à eutanásia condenados.
Adolf Hitler era um ditador das patranhas, um déspota das contradições, que apregoava a eugenia e escondia as doenças que padecia, a mão-cheia de drogas por dia que consumia, um tirano que ditava o saque e a morte de milhões de judeus, raça impura e indigna, e tinha ascendência judia, que propagandeava o ideal do nazismo no deslumbre das paradas, nos filmes, nas fardas por Hugo Boss desenhadas, e ele como modelo do boçal e da grosseria se destacava. O que o berço dá as farpelas não encobrem. Hitler e o ridículo bigode, o cabelo oleoso e lambido, os olhos esgazeados, a boca em algazarra a vociferar discursos encenados, a mão erguida na saudação hitleriana, cópia da romana, a descair para trás num desajeito de barbatana, os lábios cerrados a trucidarem sorrisos, a encobrirem a dentição falhada e entortada como tapavam a verdade, a realidade de um mitómano que se dizia um Messias e era um frustrado, a realidade de um farsante que se mostrava um herói e era um medroso, o medo que ele recalcava, o medo sob a ameaça que ele alastrava, o medo com o qual dominava, um verme falsamente respeitado pelo medo, um rato que ruminava cada segredo, que desconfiava de tudo e de todos, de cada estender de mão, de cada beijar de mão, de cada vénia encenada, Hitler, um bicho asqueroso e manhoso que nas subservientes mesuras dos súbditos, ougados de poder, de dinheiro e de poleiro, via as garras da traição, o beijo do Judas para o qual não havia comiseração. Cada um vê no outro aquilo que ele próprio é. Hitler encarnava um psicopata incapaz de empatia. Ele era o mundo e o Mundo girava em seu redor, o mundo que ele pisava, que ele escarrava, que ele enxovalhava, o Mundo que ele pôs no fio da navalha.
Se Adolf Hitler morreu ou não naquele 30 de Abril, não é relevante. Antes não tivesse nascido. Milhões de existências teriam sido preservadas e respeitadas, adultos e crianças de vidas longas, vidas promissoras, quiçá nalgumas germinassem as curas das doenças que assolam a Humanidade, saíssem obras de arte que salvam o Homem da realidade, engenhos que não poluem, não destroem a Terra, talentos portadores da liberdade, da bem-aventurança, da paz, do amor, da esperança. E que esta nunca nos falte, nem nos enuble a razão, para que na Terra não haja ditadores nem o Mundo periclite no fio duma navalha, lâmina cortante de bigodes ridículos.
04 Outubro 2024
27 Setembro 2024
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