As férias e o seu benefício
Ideias
2024-10-29 às 06h00
A última semana foi especialmente traumática para o Estado português. A perda de uma vida no contexto de uma intervenção policial no “problemático” bairro da Cova da Moura foi o rastilho para um período de incidências que degeneraram em episódios inaceitáveis de violência.
Julgo pacífico o entendimento segundo o qual o monopólio da força ou da violência deve caber ao Estado. Será esta, porventura, uma das poucas dimensões societárias em que todos os partidos do arco democrático se revêm, e onde nem mesmo os liberais mais arreigados se atreveriam a propor a privatização da garantia de segurança das populações. E não é que não existam afloramentos pontuais que já contradigam este monopólio, com o exemplo da segurança privada à cabeça, só que tal não resulta da livre iniciativa dos cidadãos, mas antes da autorização regulada do Estado para que, em dimensões pontuais e sem qualquer tipo de delegação ou renegação de competências, entidades privadas, altamente reguladas, possam desempenhar essas funções de modo meramente complementar.
Entendo, por isso, ser de elementar bom senso exigir que os principais protagonistas institucionais da nação, com os que ocupam cargos executivos e legislativos à cabeça, saibam traduzir este mandamento em ação e reação. É dizer, que se mantenham nas balizas do aceitável e medianamente responsável quer no que fazem, quer no que proclamam.
É intolerável que partidos com representantes eleitos na Assembleia da República se constituam como líderes de fação, claques de apoio de turbas em fúria, a negação da mediação que se espera ser realizada num sistema representativo. No que para mim é uma clara manifestação antipatriótica.
Não, não advogo o anestesismo como o paradigma ideal do político da nação. Percebo, aceito e reconheço que não tratar do pulsar popular equivale a contê-lo numa panela de pressão continuamente irradiada pelo calor das massas que, mais cedo ou mais tarde, tratará de a fazer explodir, de caminho cobrindo o Estado da mistela insalubre e compósita de ódios, ressentimento e raivas. Todavia, não será menos verdade que partidos que se limitam a ecoar bitaites de café, sejam eles provindos do Chiado ou da Brandoa, levam-nos a refletir sobre as virtudes da supostamente estruturada democracia representativa por confronto com a ingerível democracia direta.
E o que precisamos, hoje mais do que nunca, é a afirmação do valor acrescentado do humanismo, da tolerância e do sentido crítico. Não para abanar sonsamente a bandeira da paz, mas para ter critério sempre que se quer prevalecer pela força.
As nuances da realidade são ainda uma camada de complexidade que os automatismos das inteligências artificiais não conseguem processar com o sentido e alcance do ser humano. E para isso ilustrar bastaria relembrar as dificuldades que a famosa IA tem em desconstruir os preconceitos que acriticamente absorve quando navega nas fontes digitais a que nós, como humanos, imperfeitos mas não imutáveis, lhe damos acesso.
O que os portugueses pedem, parece-me, é a coragem de enfrentar os temas difíceis sem temer errar por mero ato de tentar. Os atos falhados, nestes casos, reservam-se aos tais dos reverberadores humanos ou àqueles que se escondem no conveniente silêncio da penumbra.
Sim, precisamos de discutir como decorre a integração dos imigrantes, mas também precisamos de rever criticamente como tratamos os portugueses que daqueles descendem.
Ser português não é ter acesso a um passaporte ou a um cartão de cidadão. E também não é ter acesso a um serviço de saúde ou a uma escola.
A noção utilitarista da nacionalidade corrói os seus fundamentos. Sem imaginários mitológicos era bom discutir, debater e apontar o que é isso de “ser português”. Não para afastar quem o não é, mas para aproximar quem o quer ser.
O mais difícil para um país não é olhar pela janela, mas olhar-se ao espelho. Eu, confesso, gosto do que vejo quando faço esse exercício metafórico, mas reconheço as muitas marcas e cicatrizes que continuam a impregnar a nossa identidade. “Faz parte”, dirão.
É verdade, mas há obesidades mórbidas que se manifestam teimosamente intratáveis, ano após ano, década após década, tomando a forma de pequenas invejas ou de um nacional porrei-racismo, em que todos se comprazem com os lugares-comuns sobre os outros, os “árabes”, os “monhés” ou a amálgama tingida dos “pretos”.
E sobre estas gorduras de Estado poucos ou nenhuns refletem. Não me ponho de fora, nem olho de alto para estas inestéticas marcas de portugalidade. Longe vá o wokismo, mas o que não faço é ignorá-las ou fingir que não existem. Tento, e é tanto quanto posso, fazer melhor à medida que o tempo passa. O mesmo que não posso deixar de exigir a quem se arvora em meu representante.
É que apesar de não acreditar que o mínimo denominador comum resida na paráfrase “se o Estado não existe então tudo é permitido”, creio convictamente que se o Estado e as suas instituições não derem o exemplo então tudo parece passar a poder ser permitido.
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