A responsabilidade de todos
Escreve quem sabe
2018-06-22 às 06h00
Não me surpreenderia que o vocábulo “Antropoceno” ainda viesse a ser considerado palavra do ano um dia destes, embora, a bem dizer, fosse mais justo considerá-lo a palavra mais importante do século em curso. Com efeito, a sua reprodução desde o início deste tem sido exponencial. Ela foi cunhada para referir um novo capítulo na história da Terra em que a nossa espécie parece investida de um poder de intervenção sobre os seus ecossistemas equivalente ao de uma força natural (e.g., a radiação eletromagnética do Sol que provoca o aquecimento da superfície do nosso planeta ou da convecção do manto terrestre que causa a tectónica das placas).
Porém, se o vocábulo refere um poder, também denota consequências do uso desse poder. Afigura- -se a muitos evidente que, possivelmente intensificada a partir da primeira revolução industrial no século 18, a intervenção humana na Natureza é cada vez mais a principal suspeita da inflação de catástrofes naturais (cheias, secas, incêndios florestais, deslizamentos de terras, erupções vulcânicas, tempestades de vento, tornados, terramotos, furacões, tsunamis, etc.) que assolam o tempo presente. Há quem afirme mesmo que essa é a nossa “nova normalidade”. John Ebert em The Age of Catastrophe (2012), por exemplo, diz: «A catástrofe tornou-se o nosso novo ambiente, um envolvente total, dentro do qual existimos, mas sem perceber a estranheza do mesmo, precisamente devido à sua omnipresença».
Claro que continuam a existir céticos a respeito de termos adquirido efetivamente este poder. A pensar neles gostaria de recordar aqui o terrível sismo ocorrido em Sichuan há dez anos. Foi a 12 de maio de 2018 que na região central montanhosa dessa província do sudoeste da China, com epicentro na cidade de Dujiangyan, o abalo com magnitude 7.9 na escala de Richter aconteceu. Resultou da colisão das placas Indo-Australiana e Eurasiana ao longo de 250km da falha de Longmenshan. Provocou, segundo dados fornecidos pelas autoridades chinesas, cerca de 90.000 mortos e 5 milhões de pessoas sem abrigo.
Esta tragédia, para alguns, foi muito provavelmente provocada pela ação humana. Sustentam eles que a combinação do peso da água (315 milhões de toneladas da água) armazenada na barragem de Zipingpu, que fica apenas a 550 metros da referida falha geológica e a 5 km do epicentro do sismo, com a sua penetração na rocha terão criado uma pressão nas camadas inferiores da falha – calcula-se que o peso da água retida no reservatório da barragem era 25 vezes superior ao da pressão natural exercida pelos movimentos tectónicos num ano – e desencadeado uma cadeia de roturas que, em última instância, provocou o desastre.
Tais gigantescas obras de engenharia parecem, pois, emblemáticas do Antropoceno. Elas revelam uma capacidade de intervenção humana na Natureza numa escala sem precedentes, embora, como se percebe, correndo riscos muito elevados, sobretudo por consequências não previstas. Enfrentamos, assim, uma situação paradoxal: projetamos e realizamos esses megaempreendimentos em prol da melhoria das nossas condições de vida, mas, ao mesmo tempo desencadeamos reações cataclísmicas na ordem natural que ameaçam seriamente a nossa sobre- vivência. Produz-se, pois, um círculo de crescentes efeitos negativos. E essa é também, porventura, uma das características mais salientes do Antropoceno: evidenciar que mais desastres naturais com causas antropogénicas geram mais e maiores catástrofes sociais ou, se preferir, que ambos estão cada vez mais emaranhados.
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