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Natália, a Poeta Exuberante

‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações

Natália, a Poeta Exuberante

Voz aos Escritores

2023-09-22 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Natália Correia nasceu há cem anos na ilha açoriana de São Miguel, a 13 de Setembro, onde a Mãe era professora primária. Foi educada numa casa de Mulheres, o gineceu das tias, Mãe e irmã, uma casa vazia de homens, sem a presença do Pai que emigrara para o Brasil, quiçá cansado de aturar o mulherio dado às superstições e às conversas com o Além, e essa ausência paterna, esse abandono do aventureiro progenitor, seria um espinho cravado ad eternum no coração vulcânico da Poeta. Aos onze anos vem para Lisboa com a Mãe e a irmã, a Mãe que lhe soube ler a apurada perspicácia e a inteligência, menina viva de olhos negros brilhantes que sorvia a aprendizagem numa ânsia desmesurada pelo conhecimento, e que na ilha não poderia prosseguir os estudos, um território talvez demasiado exíguo para a grandeza expansiva da Natália. Mas os Açores colaram-se-lhe na alma livre, terra-de-mar pedregosa berço do seu nascer, raízes que dariam frutos na sua poesia e nas suas movimentações políticas. Casa pela primeira vez aos dezanove anos num dos seus muitos actos de rebeldia, julgando emancipar-se pelo casamento, casório de pouca-dura, e os estudos oficiais, contra a vontade da Mãe, não tiveram seguimento. Na verdade, nunca deixou de estudar, era uma autodidacta compulsiva, uma Mulher de cultura e saber assombrosos, de uma eloquência espantosa e de uma escrita extraordinária, que aliados à sua beleza e teatralidade, a faziam destacar onde quer que estivesse. Natália foi fadada com a maldição da beleza, a beleza que no seu dizer lhe ofuscava a inteligência, ela queria ser evidenciada por atributos que ultrapassavam o físico, a elegância de ânfora, os cabelos escuros a contrastarem a pele alva, os lábios carnudos bem desenhados a par das feições cinzeladas no rosto belo, lábios rubros que beijavam a boquilha sensual dos omnipresentes cigarros, cujo fumo acentuava o mistério da sua aura.
A Poeta contraiu matrimónio quatro vezes, mas foi o seu terceiro marido, Alfredo Machado, quem mais a mimou, talvez Natália nele visse o Pai que a deixou, o Senhor Machado encarregava-se de mundanidade à qual Natália era avessa, não passava um cheque, não estrelava um ovo, não se apoquentava com contas a pagar, vivia no seu mundo etéreo da criatividade, estendida na cama horas infindas a estudar e a escrever, servida em bandejas pelas criadas que acatavam as instruções domésticas do patrão. A par do isolamento necessitava de conviver, dar largas à exuberância no salão da sua casa e depois no Botequim, uma espécie de bar lisboeta onde se reuniam, noites adentro, amigos, músicos, poetas, escritores, intelectuais e dissidentes do regime salazarista e mais tarde marcelista. No Botequim, Natália recitava poesia, discursava, cantava, tinha uma voz lindíssima, acolhia os bem-vindos e expulsava, sem papas na língua afiada, os mal vindos. No seu palco deslumbrava, tinha entranhado o impulso da exibição, na verdade, a sua presença poderosa e magnética, aliada à autenticidade do seu ser, cativava plateias de admiradores. Era camaleónica, escrevia, cantava, pintava e posteriormente, influenciada por Francisco Sá Carneiro, entrou no mundo da política. Quando a Mãe morreu no Brasil, para onde fora na companhia da outra filha, Natália sentiu na alma e nas entranhas e estigma da orfandade e durante dois anos apartou a escrita e embrenhou-se na pintura. Nas tintas diluía a dor recalcando as palavras. Mas a escrita falou mais alto e arrancou-a da profundeza da tristeza. Também o inconformismo a ergueu das águas tumultuosas do sofrimento.
A sua manifesta oposição à ditadura salazarista e a sua luta pelos direitos humanos e das Mulheres, num país atrasado e machista, demonstravam as suas ganas de mudança, de evolução e de Liberdade. Natália era genuinamente livre, uma Mulher que se erguia e destacava num mundo de homens, numa época em que à Mulher se impunha a subalternidade, o confinamento caseiro, a parição de proles enviadas por Deus, filhos mal medrados na casinha portuguesa onde ficava bem pão e vinho sobre a mesa, o vinho que na boca do Botas ditador alimentava um milhão de portugueses ébrios de incultura num Portugal caduco. Natália não se calava, bradava as injustiças, contestava a tacanhez do sistema, intrépida, ausente de medo, a Poeta fazia da poesia uma arma. Em 1966 Natália Correia decidiu publicar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, uma compilação de textos de conceituados poetas e ilustrações de Cruzeiro Seixas conotados pela censura de imorais, ofensivos ao pudor geral, à decência e aos bons costumes. Foram a tribunal. Indignada, a Poeta vozeou, indomável, Ó subalimentados do sonho! A Poesia é para comer! O advogado de defesa, Adelino da Palma Carlos, calou-lhe a declamação no julgamento, argumentando entre os mais próximos: É doida varrida, se o tivesse declamado levava uma talhada que não se endireitava! Natália Correia foi condenada a 90 dias de prisão correcional, substituídos por igual tempo de multa a 50 escudos por dia e mais 15 dias de pagamento à mesma taxa. Na verdade, a punição não a coartou nem a calou. Até ao fim dos seus dias soltou o vozeirão de Mulher destemida que calava as suas vulnerabilidades próprias da condição humana, somente conhecidas pelos íntimos, como o pavor mórbido de dormir sozinha. Natália morreu a 16 de Março de 1993, na sua casa em Lisboa. Pressentiu a morte chegar e ergueu-se para recebê-la na dignidade dos invencíveis. Natália de Oliveira Correia morreu de pé aos 69 anos de idade. A sua obra e seu carisma eternizaram-na.

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