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Braga, sábado

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Natal no Barroso

As férias e o seu benefício

Natal no Barroso

Escreve quem sabe

2021-12-24 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Não há quem apague o cheiro do dia mais belo da minha infância. Desde o acordar até à deita, há nele o abraço que apazigua quem perdeu e renova quem quis desistir. Em menino fui um labirinto sem quereres. Dava por mim, em ânsia, a ter o desejo que chegasse o Natal. Sabia que não havia ralhos. Havia espantos por mais breves que fossem.
Por entre lençóis e cobertores soltava o primeiro fumegar da manhã. A névoa, espirrada pela boca, desenhava caricaturas abstratas que desapareciam à medida que se afastavam da cama. Custava sair. A casa, tecida pelo frio, era tão larga como largo era o meu palpitar. Os primeiros passos cedo apontavam para a cozinha onde me esperava o calor da lareira. Nesse dia, a lenha não era poupada. Rachas de carvalho pela manhã. Os torgos da Lagoa e os cepos de carvalho chegavam à medida que o dia perdia fôlego. Os tições eram guardados para quando rompesse a trovoada.
Temperado o estômago, abria a porta. Lá fora, o Lorde latia. Outros sons nasciam da procissão de vacas que vertiam bosta. Não havia aguilhão nem junguiam. Também elas tinham Deus a seu lado. Pelo meio, o burro e a cainçada. Eram sons nutridos. Barulhos soltos. No regresso era provável que o carro do burro, carregado de couves pelos ladrais, fosse ópera. Era um dia farto para todos. Mesmo para os do refugo, aqueles que tinham dentes pintados de negro, roupa furada, calçado desconexo e uma mão cheia de nada para lançar à mesa.
A tarde tinha o cordão da tranquilidade. A regra era clara: regressar a casa quando o gadinho descesse da serra. Dava-se de comer à fazenda e fechava-se a porta. A meio do dia, visitávamos a família mais próxima. Antes da rês chegar, ainda havia tempo para jogar à bola na eira. Uma dança de pernas, alguns encontrões, uns amuos e o suor que escorria pela costela. Os duelos vistos por velhos, cobertos pelas capas de burel ou por samarras, e por aqueles que não cabiam nas equipas, atiçavam a fúria da corrida tantas vezes embalada por um chão envidraçado. Era uma fárrea de gente. Vozes com sotaque cerrado que semeavam Barroso por todo o lado.
À medida que o gado recolhia, alguns ainda tentavam dar o golpe de misericórdia na torna do lameiro. Em lusco-fusco, com o sacho às costas ou suspenso pelo braço, homens calcorreavam o caminho de terra batido pela galocha ou pelo soco aberto. Nas lobadas, os carpins molhados seriam secados, já no lar, com o calor do borralho. Era ver quem desistia primeiro à pressão da hora do comer. Aquela curta viagem servia, também, para espantar o odor do bagaço que momentos antes tinha sido inalado na taberna da aldeia.
Já em casa, sem árvore nem sapatinho, a noite da ceia ganhava alma com o que saía do pote. Era tudo olhos para os braços do polvo e a silhueta do bacalhau. A couve, colhida pela geada, e o azeite davam-lhes uma textura que fazia corar qualquer chef. Os pratos de esmalte hospedavam o melhor do ano. Um bálsamo que coava silêncio.
Noite dentro, as vozes casavam. Falava-se da vaca que estava para parir, da leira que prometia colheita farta, dos filhos de França, dos pais que tinham partido e da esperança que o reumatismo desse um pouco de trégua para o ano seguinte. A um canto, com uma vela acesa, estava o presépio cercado por musgo apanhado às sortes. A minha safra era capturada no pátio da escola. Havia uma parede de uma casa inabitada que me transmitia segurança. Arriscava. Um risco calculado, longe da bravura de outros que pulavam hortas à cata do verde luzidio.
O que mais me enchia a alma era saber que até na casa dos cabaneiros a noite era diferente. Um saco de batatas, couves, meia dúzia de ovos, parte de uma folha de bacalhau e o tão amado pão do forno do povo eram deixados por quem mais tinha. Era costume serem sempre os mesmos, nem sempre os mais faustos.
Mais tarde, chegavam os presentes. Um por cabeça. Para quem chegava. Luxo para carteira de emigrante. Porém, o que ficou em mim nunca foi embrulhado. Mora-me o serão. A cozinha fumada. A reza. Beber pela mesma caneca. Cremear a lã. Jogar à bisca. O barulho das vozes. O silêncio do lume. Tanto em tão pouco. Entre... quem é?

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