Braga - Concelho mais Liberal de Portugal
Ideias
2018-05-28 às 06h00
O parlamento irá discutir na próxima semana várias iniciativas legislativas acerca do direito a morrer com dignidade (especificamente através da eutanásia e/ou suicídio assistido), uma iniciativa que surge depois do Movimento Direito a Morrer fundado pela professora da Universidade do Minho Laura Ferreira dos Santos (1959-2016) ter colocado o assunto na agenda pública nacional.
O debate tem sido interessante, ainda que pontuado por momentos de infeliz populismo e desinformação. A confusão mais evidente tem vindo do espetro mais conservador do sistema político português onde se encontram por estes dias o CDS-PP, a ala mais religiosa e conservadora do PSD e o PCP: desde insinuações sobre os propósitos pretensamente economicistas ou capitalistas da medida até à sistemática confusão entre a disponibilidade de cuidados paliativos e a possibilidade eutanásia e/ou suicídio assistido, o prato do populismo e da desinformação tem estado bem preenchido nas últimas semanas.
Em sentido contrário à desinformação, li por estes dias no Observador a opinião do padre Miguel Almeida, um jesuíta que se manifestou contra a aprovação da possibilidade de eutanásia (Deixem-me morrer com dignidade, 10.05.2018). Dos seis pontos com que sustenta a sua posição, subscrevo, sem qualquer dúvida ou hesitação, os primeiros cinco. Esta concordância de visões quando o debate se faz no campo das ideias e não no terreno da propaganda abre esperança para um consenso político e social alargado numa matéria sensível em que é naturalmente difícil ter certezas absolutas.
Vivemos num tempo em que pretendemos (quando não exigimos mesmo) a imortalidade a qualquer preço. Com os ganhos absolutamente espantosos na esperança média de vida e no número de anos de vida saudável de que cada pessoa usufrui, desabituamo-nos de morrer. Pior que tudo, vivemos a morte (a nossa e a dos outros) com maior dificuldade e mais sofrimento do que nunca. Em tempos de exaltação de uma certa imortalidade da pessoa, parece que nos esquecemos que todo o destino é, inexoravelmente, partir.
O debate que Laura Ferreira dos Santos (e outras/os) trouxeram para a agenda mediática é, por isso, muito mais do que aceitarmos que haja entre nós quem pretenda ajuda para morrer em paz, em tranquilidade e de uma forma digna. É aceitarmos que a racionalidade do outro não tem que ser exatamente a nossa racionalidade. É respeitarmos a autonomia do outro ao ponto de assentirmos que as suas escolhas (naquilo que só a ele diz respeito) nos possam causar sofrimento extraordinário porque contrárias aquilo em que acreditamos. É acolhermos cada um na sua forma de enquadrar a sua vida e de conceptualizar a sua dignidade.
Escreve o padre Miguel Almeida que a morte não é um assunto privado, enaltecendo depois a fragilidade humana que nos aproxima uns dos outros. É exatamente aqui que mais me aproximo da pessoa e mais me afasto da sua forma de pensar. Aproximo-me do padre Miguel Almeida porque aceito plenamente o seu juízo acerca da sua vida, da sua morte e do seu sofrimento. Afasto-me desta forma de pensar porque recuso que a sua visão possa ser legislativamente imposta aos demais.
A morte não é, objetivamente, o assunto de uma pessoa só. Mas as decisões acerca da vida de alguém que está na posse plena das suas capacidades cognitivas, volitivas e mnésicas, por muito que isso custe aos demais, é da sua exclusiva responsabilidade. Foi a ideia de que o interesse da sociedade se sobrepõe à liberdade e à dignidade da pessoa naquilo que exclusivamente lhe diz respeito que fundamentou durante séculos o esmagamento da pessoa e a diminuição de muitas das suas liberdades individuais que hoje reconhecemos como Direitos Humanos.
A morte nem sempre corresponde ao momento em que perdemos alguém. As pessoas perdem-se no exato momento em que os outros se lhes impõem, reduzindo a sua vontade e a sua dignidade à dignidade de coisas.
É, também por isso, que a Laura ainda não morreu.
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