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Conta o Leitor

2018-08-27 às 06h00

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Autor: Márcio Gois

Que berraria na sala de parto. Eu, que estou aqui a uns escassos centímetros dela, consigo sentir nos tímpanos as dores agoniantes do parto.
- “Cala-te, por favor!” – digo eu incessante e interiormente, perto de definhar devido à sua voz estridente. Até ao momento, não me sinto incomodado por assistir ao trabalho da parteira e seus assistentes. Incomoda-me antes a sua face arroxeada de terror, onde se podem ver, com precisa nitidez, as veias prontas a irromperem, a qualquer momento, da sua pele. Os seus olhos, verde torrado na íris e preto na esclera, lacrimejam com tanto sofrimento. Nunca a havia visto tão aterrorizada. De resto, já utilizou diferentes jargões para me insultar desde que iniciou o trabalho de parto. O que mais vezes disse em gritaria até agora foi:
- “Tira-me isto daqui de dentro, seu Cabrão! Tira-me! Tira-me, Cabrão!”
Já não sinto sequer a mão direita, que ela própria fez questão de tomar como sua, sem me pedir licença. Até a sensibilidade nas raízes dos dedos perdi. Apesar da dureza, já me estalou as falanges repetidas vezes, ao ponto de não senti-las mais.
- “Larga-me de uma vez por todas. Larga-me, por favor. Estou-te a pedir: Por favor!” – digo eu mais uma vez em desespero para mim mesmo. Não sou capaz de lhe chamar à atenção do que seja neste preciso momento. Não quero enervá-la ainda mais, pois dessa forma posso complicar a sua preparação para o momento em que saía, definitivamente, o devir. De pernas arqueadas, o Assistente pede-lhe para abrandar a respiração. Ela tenta, mas parecem em vão as recomendações do Assistente. Ao invês, continua a respirar ofegante, como um touro sedento de raiva depois de lhe espetarem um ferro no lombo, não abrandando o ritmo entre as respirações. O coração dela bate, como um desvarido, contra as costelas. Tamanha é a força das pancadas, que, quando menos esperar, lhe rebentará os seios e a deixará desprovida de amor. Que imagem do inferno. Sempre julguei que, por volta desta altura, estaria desmaiado no chão, enquanto um dos Médicos lhe daria a mão, poupando então a minha à sua carnificina.

Todavia, enganei-me. Continuo bem desperto, não sinto tonturas, apenas tenho a tensão mais alta. O que não surpreende minimamente, tendo em conta o momento que é. Eu é que devia ser evadido pelo cateter da epidural, a ver se ficava momentaneamente imune ao stress emocional motivado por esta berraria. Porque foi ela tomar a epidural, se as dores não lhe desapareceram. Conhecendo-a bem, como eu a conheço, posso supor que a epidural ajudou antes a libertar nela dores em sítios que até ela própria desconhecia tê-las.
Do trabalho até aqui tive que conter a pélvis. Há mais de cinco horas que não mijo. De tanto contrair o pénis, doi-me a bexiga. Depois de lhe rebentar a bolsa só me preocupei em chegar, o quanto antes, até si. Nessa altura, ela já estava a encaminhar-se para o Hospital. E assim acabei por me esquecer de mijar. Porém, não me atrevo a dizer, logo agora, que preciso de um balde para aliviar a tensão sentida na bexiga.

Entretanto, a Parteira, com um ar sisudo e exultante, diz em voz alta:
-“É agora. Inspire bem fundo, contenha o ar e faça o máximo de força que poder para baixo!”
Ainda não é desta. Ela volta a respirar ofegante. A Parteira pede-lhe para tentar novamente. No entanto, só à quarta tentativa é que pudémos vislumbrar, primeiramente a cabeça da Miriam, seguindo-se o restante corpo. Comecei imediatamente a lacrimejar. Aliás, a berraria dela havia terminado, coisa que eu não tinha notado, para dar lugar aos gritos de choro da Miriam. A minha atenção está agora unicamente centrada naquele pequeno ser. Noto que tem os olhos do Pai, sendo tão escuros como o carvão preto. Por outro lado, o tom de pele moreno assemelha-se bastante ao da Mãe. É, aliás, bem rochunchuda. Todavia, as feiçoes, de tão pequenas, são ainda difíceis de decifrar. Além disso, ainda agora nasceu, e só penso nas gargalhadas que dará, nas primeiras palavras que dirá, nos abraços, nas carícias, nas vezes em que terei de lhe trocar a fralda, na chupeta, no biberão, no leite materno, nas cocegas, nos primeiros dentes, no berço, nas músicas de embalar, nas noites passadas em claro, nas caretas, na roupa, no calçado, e em tudo mais.

A Parteira corta-lhe então o cordão umbilical, limpando-a e envolvendo-a numa toalha para devolvê-la à Mãe. O colo da Mãe teve um efeito terapêutico na Miriam. Acalmou-a em definitvo. Parou de chorar. Entretanto, sento-me na beira da cama para tocar finalmente na Miriam. Faço-lhe assim uma festa na bochecha e dou-lhe um beijo na testa. Ela sorri, antes de deixar de respirar. Sem nenhum motivo aparente, o coração dela para. Ninguém quer acreditar no que acabou de acontecer. A Mãe, derramando lágrimas de desespero, tenta a todo custo reanima-la. O Médico, em contrapartida, procura desempenhar um papel que é seu, pedindo-lhe encarecidamente que pare e o deixe tentar trazê-la à vida. Mesmo assim ela não a larga. Tive Eu, juntamente com os Assistentes, que tirá-la à força de seus braços. Depois de tantas tentativas, nem os próprios médicos conseguiram contrariar a morte de um ser tão pequeno, cuja expressão afagável de um último sorriso contradiz com a rudeza da morte. Destroçada, sem vontade de continuar viva, a Mãe diz-me em psicose nos olhos:
- “Nós morremos neste dia!”

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