As férias e o seu benefício
Escreve quem sabe
2022-04-01 às 06h00
Não gosto deste dia. Nunca gostei. Há nele o barulho da solidão. Se pudesse retirava-o do fado dos dias. Olho para ele como se olha para uma fraude. Tem vidro no olhar. Respira bolor.
O primeiro sinal deste dia ominoso recebi-o na escola primária. Uma peta fez-me corar de vergonha pela insustentável ingenuidade que partilhei. As crianças são duras. Não têm filtro. Raramente desviam o olhar. É inusual medirem a palavra. À custa da minha bonomia fui alvo de chacota por largos dias. Horas de peso. Dias com fardo na mente. Semanas de guelra silenciada.
Esta vivência não impediu que voltasse a cair nas malhas da mentira nos anos seguintes. Episódios que criaram enfado e uma luta individual para que, no ano seguinte, não voltasse a acreditar nestas malfadadas 24 horas. Porém, houve um ano que deixei embarcar o olhar na nuvem. Alonguei o sorriso quando todos murmuravam gozo. Fi-lo em consciência pelo sonho de ver regressar o meu ídolo de infância, Paulo Futre, à casa onde nunca devia ter saído. Apenas e tão só nesse ano soube degustar esta infortunada data.
Sempre gostei de banda desenhada. Foi com ela que fiquei enamorado de personagens de animação, criadas pelo universo Disney, como Pato Donald (Donald Duck), Peninha Pato (Fethry Duck), Irmãos Metralha (The Beagle Boys), Mancha Negra (The Phantom Blot) e o incorrigível Pateta (Dippy Dawg, mais tarde rebatizado Goofy). Por essa altura tinha fácil acesso a estas ofertas e foi com elas que dei de frente com uma história onde o protagonista foi o desengonçado Pateta. Em dia de mentiras teve uma chance tão gloriosa a ponto de ludibriar toda a gente e fazer explodir o irresistível “iac, iac”. Por breves instantes, também eu soltei um fugaz mexer de lábios. Por aí ficou.
Este inefável dia começa a ser desenhado por brincadeira em França, no século XVI, sob o reinado de Carlos IX. Reza a lenda que, nessa época, o ano novo era celebrado a 25 de março com a chegada da Primavera. As festas, que incluíam troca de presentes, duravam uma semana o mesmo é dizer que chegavam ao fim a 1 de abril. Em 1582, com a adoção do calendário gregoriano, o rei decidiu que o ano novo deveria passar a ser comemorado a 1 de janeiro. Alguns franceses não aceitaram a mudança no calendário e continuaram com a tradição antiga. A população, que adotou o novo calendário, decidiu recrear-se com os tradicionalistas enviando-lhes presentes bizarros e convites para festas inexistentes. Com o passar do tempo, a brincadeira alastrou-se a outros países da Europa e ao resto do Mundo.
Hoje é feriado em Odessa. É assim desde 1973. Chamam-lhe Humorina. Até ser esventrada pela demência de Putin, esta cidade ucraniana oferecia ao povo um dia de folia com um imenso desfile, espetáculos de porta aberta, feiras de rua e apresentações. Um carrocel de liberdade, fantasiado consoante a criatividade de cada um. Oxalá tudo fosse um embuste. Um logro que permitisse uma viagem só com bilhete de ida.
Há gente com alma para enganar. Está-lhe no sangue. Um palco que dominam com mestria. É passadeira vermelha para espanto da plateia. Chegar a este dia é ter autoridade sem máscara para aplicar a patologia. A memória lembra-nos alguns episódios que espelham o homem doutrinador nesta matéria. O mais notável aconteceu em 1957 quando a televisão BBC garantiu que o esparguete era colhido em árvores. A reportagem de três minutos foi de tal forma convincente que o próprio diretor da estação britânica acreditou. As linhas ficaram entupidas. As pessoas foram aconselhadas a plantar molho de tomate e a esperar.
Neste tabuleiro ainda cabem factos assumidos como verdades e que não passam de mentiras. Há exemplos de sobra. Deixo alguns: Cleópatra ser egípcia (ascendentes gregos, macedónios e persas); Guerra dos 100 anos durar um século (1337 a 1453 - 116 anos); James Watt ter inventado a máquina a vapor (feito pertence a Thomas Newcomen) e os humanos descenderem dos macacos quando na verdade a teoria da evolução explica que tudo começou com o Homo Sapiens. Ao invés, há verdades que nasceram neste dia e que fazem estalar o aplauso. Relembro o início da ditadura militar no Brasil (1964); fim da Guerra Civil Espanhola (1939) e a poética fundação da Apple (1976).
A tentação de abrigar uma história que provoque encanto é, para muitos, um alívio de espírito. Não temem o ricochete. Avançam em pantufas a fazer figas para que a inocência seja raptada. Quando sentem terreno firme são muitas vezes letais. O que fica é o que contam, nunca o que provocam. E você caro leitor, acreditou no que lhe escrevi?
19 Julho 2025
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