E a guerra continua...
Voz aos Escritores
2019-01-25 às 06h00
Luiz Ferreira. Nascido a 18 de Outubro de 1902 na “província do Minho, Braga”. Pai: Lourenço (Laurent). Mãe: Joana Ferreira (Jeanine), nascida Oliveira. Solteiro. Sem filhos. Altura: 1,58. Peso: 61 quilos. Louro. Esguio. Olhos castanhos. Falta de alguns dentes. Fala francês, português e espanhol. Ferimento de guerra em 1937: lesão na coxa direita. Número de prisioneiro: 69369.
Esta era a minha ficha. Um mero papel a atestar a minha presença no inferno. Um entre os milhares de vítimas do campo de concentração de Buchenwald.
Emigrei com o meu pai para França. Ele regressou a Portugal. Eu fiquei. Os meus pais nunca souberam que era comunista e sindicalista. Nunca souberam que fui voluntário na Guerra Civil de Espanha. Nunca souberam que pertenci à Resistência Francesa.
Prenderam-me a 15 de Outubro de 1940. Deportaram-me em 31 de Julho de 1944.
Era um dos 1191 passageiros do comboio que saiu de Toulouse com destino a Buchenwald. Havia mais quatro portugueses. Nos vagões, lia-se a sua capacidade: 8 cavalos e 40 homens. Éramos 120 em cada carruagem. Durante a viagem, não nos deram de comer, nem de beber. O calor insuportável, o cheiro nauseabundo. Seguíamos em pé. Corpos contra corpos. Lágrimas enxugadas em ombros estranhos. Suores escorridos em lapelas estreladas. Urinas vertidas em pés alheios. Soluços abafados em costas desconhecidas. Fezes vergonhosas em sapatos de defunto. Judeus, Testemunhas de Jeová, Ciganos, comunistas, resistentes, homossexuais. Gente a quem colocaram um rótulo, uma estrela amarela, um triângulo vermelho. Gente moldada da mesma carne, do mesmo sangue, do mesmo medo. Gente desesperada, enclausurada, humilhada.
Jedem das seine, a cada um o seu, letras torneadas no portão de Buchenwald. As portas do inferno escancararam-se. Os guardas de espingardas e chicotes a acirrarem-nos os cães. Agrupámo-nos. Despimo-nos. Ilse Koch, a bruxa de Buchenwald, a ninfomaníaca, a ladra, a esposa adúltera do comandante do campo, apropriou-se dos valores dos prisioneiros e pousou os olhos predadores nos corpos tolhidos. Procurou peles idóneas para a sua colecção macabra de abat-jours de pele humana, luvas de pele humana, capas de livros de pele humana, álbuns de tatuagens retiradas dos prisioneiros mortos, por ela seleccionados, por ela condenados, nos fornos incinerados. O ouro dos dentes garimpado, por ela amealhado. Semanas mais tarde, comemos o seu gato de estimação, minguados de ração, felino que a bruxa afagava enquanto os humanos assassinava.
A ópera de Richard Wagner, soprada pelos alto-falantes, misturava-se nos gritos dos espancados, nos tiros aos fuzilados, nas súplicas dos empurrados.
Ecos de amor, sons de horror, brados de pavor.
Nos barracões procederam às desinfecções. Raparam-nos as cabeças. Atiraram-nos pijamas riscados, trapos enxovalhados, de suor empestados. Tatuaram-nos números. Gritaram-nos a nossa sorte: estavam precisados de braços para laborar, não iríamos nos fornos assar, se fugíssemos, teriam de nos matar para o exemplo dar. A máquina de guerra nazi não podia parar, havia munições a fabricar, peças na Junkers para os aviões apetrechar, pedras e barras a acarretar, os caminhos-de-ferro a toda a hora a funcionar.
Os barracões regurgitavam de condenados. Dormíamos três horas empilhados. Homens andrajosos. Homens famintos. Escravos decadentes de corpos dormentes.
Cadáveres de morte adiada, pele caída, amarelada.
Olhos encovados. Olhos arroxeados. Olhos apagados. Os que adoeciam, para o forno iam. Outras levas os substituíam. Nos laboratórios, faziam-se “experiências científicas” em cobaias humanas: olhos retirados, vírus injectados, estômagos vasculhados, procedimentos executados em homens acordados, amarrados, amordaçados. Cientistas a procurar fundamentar a raça ariana, a suprema da espécie humana.
As portas do inferno abriram-se. Arrastámo-nos por 27 dias. Os guardas seguiam a marcha dos esqueletos. Fuzilavam os caídos. Amanhã, será o meu fim, pensei, longe dos meus, vazio de forças, oco de alento, despojado da fé pela cegueira de Deus.
O amanhã chegou. Os Aliados também. Os meus pais nunca souberam que passei cinco anos em prisões francesas e num campo de concentração nazi.
Escrevo para que todos saibam. Escrevo em memória dos milhões dizimados pela barbárie humana. Escrevo para que a Humanidade não esqueça… Nunca.
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