A responsabilidade de todos
Voz aos Escritores
2018-10-26 às 06h00
Quando um escritor olha a realidade e procura nela a sua essência, que faz ele senão repetir gestos ônticos comuns a todos os seres humanos? Que tenho eu em comum com Platão e Aristóteles, Demócrito e Camões, Descartes e Einstein, Bohr ou Heisenberg? Na minha qualidade de escritor, dou relevo à realidade, às suas formas, às suas qualidades, à sua matéria, ou, partindo dessa realidade, subo à ideia, transformando-a com os olhos da imaginação e da emoção? Camões, leitor insuspeitado dos filósofos gregos, sugeriu que o amador se transforma em coisa amada em virtude do muito imaginar, algo que já Leão Hebreu havia sugerido nos «Diálogos de Amor», e, ao fazê-lo, sobrelevou o amor como essência e perfeição.
Noutros passos, não postergou as formas femininas, o amor físico, acenando a Aristóteles a licitude das suas teorias. Materialismo e idealismo, vocábulos cujos significados oscilam ao longo dos séculos, fundamentam múltiplas e complexas discussões filosóficas que, ao chocarem com o espantoso avanço científico e o declínio da cogitação e valoração humanísticas, desvelam inseguranças e incertezas. Ciente deste facto, já Descartes nos alertara para a importância da dúvida, ao ganhar consciência da cisão entre a realidade material e a realidade espiritual, difíceis, obviamente, de discernir. Se os filósofos gregos já nos haviam alertado para a dificuldade de identificar, na realidade, as suas partes, os seus átomos, a física quântica atual eleva o alerta a uma potência impossível de determinar. A teoria da relatividade especial proposta por Einstein, por exemplo, explica contrações e dilatações de uma forma contrária ao senso comum. O ponto de partida é o universo cognoscível, mas falta provar a sua validade para todo o universo. A ideia impõe-se à matéria. Um dia, a matéria mostrará que a ideia está eventualmente errada. O posicionamento de Bohr relativamente à forma como vê a realidade balouça entre o objetivismo e o subjetivismo.
Por seu lado, Heisenberg não duvida em reconhecer a importância do conhecimento dos clássicos e dos fundamentos filosóficos para o aprofundamento e validade da ciência quântica. Se nos situarmos no âmbito literário, sabemos em que se distinguem romances como o «Ulisses», de James Joyce, «os Maias», de Eça de Queirós e, por exemplo, «Finisterra», de Carlos de Oliveira. Da pretensão realista de um à simbologia realista de outro, do objetivismo de uns ao psicologismo de outro, a modalidade narrativa diverge na explicação das coisas e da vida. Cesário Verde é o poeta do campo e da cidade. Quando ele diz que são, objetivamente, dez horas da manhã e que os transparentes matizam uma casa apalaçada, e que a larga rua macadamizada fere a vista com brancuras quentes, faz uma descrição absoluta da matéria visível, acionando alguns dos cinco sentidos com ausência de idealização. Herberto Hélder é, por seu lado, o poeta de um não sei quê.
A que nível ideológico devemos subir para compreender a mensagem de «Ao cimo do caule de sangue, essa flor confusa. Um equilíbrio igual, só a estrela ao cimo do êxtase.»? Na minha qualidade de escritor, de aprendiz de escritor, de escrevente de uma língua que, servindo à descrição, à interpretação e à explicação do mundo, se conforma como um sistema apenas parcialmente capaz de cumprir tais desideratos, que devo fazer? Posso estarrecer, paralisar o meu conhecimento do mundo e a indagação filosófica. Ou posso fazer como Heisenberg, observando os átomos de toda a realidade, selando o trabalho científico, mas acompanhando-o com o aprofundamento ontológico, com o conhecimento da filosofia inicial e do seu percurso ao longo dos tempos e, o que se afigura absolutamente fundamental, valorizando o ser humano e as suas produções artísticas. Ao estudar a gramática da língua portuguesa, ao usá-la em textos literários e meta-literários, ao aprofundar o conhecimento, a ação didática, pedagógica e filosófica, cumpro, como investigador, professor e escritor, a minha missão.
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