Correio do Minho

Braga,

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Mãe Eterna. Filho Efémero

As emoções no outono

Ideias

2018-05-04 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Atónita, assoberbada pelo medo, apercebi-me do teu crescer nas minhas entranhas. Não te esperava, não era o momento oportuno, não tinha condições. A vida pesava-me. Carregava fardos de solidão. Minguava-me o pão-nosso de cada dia. Dilatava-me o desalento. Não te minto, meu filho, nunca te enganarei.
No início, estranhei-te.
Estranhei o roliçar do meu corpo que escondia de todos para evitar os olhares de esguelha, os comentários mordazes, lá vai a embuchada, a empipada, a parideira de espúrios, para não ouvir a humilhante divagação, quem será o pai do enjeitado, para fugir dos risinhos sarcásticos que me perseguiam como moscas atrás da merda.
Depois, desejei-te.
Quando começaste a afagar-me o ventre com o teu adejar de borboleta, senti-te parte de mim. Eras uma extensão do meu ser. Amarrei-me a ti como um náufrago à bóia de salvação. Desprezei os dizeres maliciosos e os cochichos zombeteiros. Nada me podia arreliar. Trazia-te comigo. Levava o mundo dentro de mim. Estava prenhe de vida.
Tu, meu filho, engravidaste-me de amor.
Rasgaste-me o corpo. Escorregaste-me pelas pernas tingidas de vermelho, manchaste-me as mãos trémulas e sôfregas, avermelhaste-me os lábios insaciáveis que te beijavam, o nariz que te cheirava, a língua que te lambia. O teu grito inaugural ainda soa nos meus ouvidos como uma melodia remota, estonteante, inesquecível. Rasgaste-me a alma.
Gente institucional asseverou-me que os papéis onde risquei o nosso infortúnio eram provisórios, garantias para poder visitar-te naquele lugar onde te deixei, inundada em lágrimas, culpas e aflições, obrigada pelas carências da vida e misérias de mãe solitária, uma situação transitória, diziam, categóricos, do alto do seu poder mandatário, uma situação que se sanaria no breve porvir. Enganavam-me.
Catava fragmentos de ternura nas visitas programadas. Enchias-me o colo vazio sem me saciares a dolorosa saudade. Encaracolava-te os anéis dourados, ameigava-te a macieza da pele nívea, punha na tua boquinha rubra a palavra mamã, para me declarares, mamã, para me alegrares, mamã, para o som mágico e visceral da minha condição se eternizar na tua memória.
Julguei enlouquecer no dia em que não te encontrei. Incrédula ouvia, está muito bem, o menino, em casa farta, atulhada de mordomias, pais amorosos, lar harmonioso, presente sorridente, futuro garantido, é um sortudo, o menino. Que não, não podiam dizer-me quem, nem onde, nem quando, nem porquê, é a lei, a lei proíbe, a lei impõe, a lei comanda a vida dos desamparados nas mãos dos que dela entendem.
Não te abandonei. Arrancaram-te de mim como fazem aos cachorros das cadelas, aos pintos das galinhas, aos bacorinhos das porcas. Arrancaram-me um pedaço, mutilaram-me, feriram-me para sempre no corpo e na alma. O estigma da chaga viva permanece, não cicatriza. Os rios dos olhos misturam-se no sangue vertido, correm para oceanos poluídos, maculam a crença na condição humana. O som do teu grito inaugural desperta-me dos pesadelos contumazes. Acordo, em sobressalto, alagada em suor, pranto e desespero. Onde estás, meu filho, onde estás…
Idealizo-te grande, bonito, feliz. É assim que quero que estejas. É assim que me convenço que estás. Imaginar-te bem apazigua-me o tormento sem conseguir aniquilá-lo. Imaginar-te bem esmorece-me a mágoa por não estar ao teu lado a proteger-te, a mimar-te, a aconselhar-te. Carrego fardos de culpa.
Todos os dias te invoco, mas hoje, Dia da Mãe, choro-te mais. Não perco o desejo do reencontro. A esperança alenta-me a existência sofrida. O pesar que trago é desumano. Não saber de um filho é uma maldição imerecida às mães. Dizem que os filhos não são nossos, são do mundo.
Tu, meu filho, és o mais mundano. Um filho da Terra. Um filho da desdita. Um filho efémero.
Aqui, em todo o lado, a todo o tempo, serei a tua mãe. Carrego fardos de saudade. Carrego fardos de amor. Carrego fardos de dor. Carrego-te.

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