Correio do Minho

Braga, sábado

- +

Linda

As férias e o seu benefício

Linda

Escreve quem sabe

2022-11-11 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Foi num domingo quente, por entre muita conversa, que escutei uma voz que nunca mais perdi. Saía de um gira-discos por onde entrava Portugal. A casa, diminuta, envolvia os meus pais e alguns tios. Pelo meio deambulava o meu corpo nessa França de 1980.
Ser filho de emigrantes é ter saudade nos olhos. Não há tempo que apague o valor do apego. O abraço que se teve. Há um cheiro de pele que nunca mais sai. Insiste-se onde se desiste.
Meses antes, Teolinda Joaquina de Sousa Lança – nascida em Beringel, no concelho alentejano de Beja – era um nome como tantos outros no alvoroço de Paris. Criada num orfanato e sem nunca ter tido um beijo de mãe, galgou a fronteira a salto tal como o meu pai e tantos que conheço. Por entre limpezas, a “femme de ménage” cantava no café Chez Loisette, em Saint-Ouen. Um dos clientes, André Pascal, ficou de tal forma enfeitiçado que a conduziu até Claude Carrère, o produtor musical que viria a produzir “Um português”, a canção que rapidamente se tornaria no hino dos emigrantes. O estrondo foi de tal ordem que a versão francesa “Un portugais” – contém a famosa expressão “Mala de Cartão”, mais tarde convertida em filme – vendeu, na altura, 800 mil discos.
Esta bandeira, tantas vezes içada por entre choro e saudade, percorreu os labirintos de uma França de porta aberta. Um país arraçado que acolheu milhares de portugueses. Ser português era igual a trabalhador leal. Ouviam e não percebiam. Não havia perguntas. Poucos sabiam ler e escrever. Humildes, obedeciam cegamente ao patrão. A esmagadora maioria era trabalho-casa. Os primeiros – como o meu pai que emigrou em 1964 – estendiam o corpo pelos bidonvilles de Champigny-sur-Marne, bairro de lata que chegou a ter mais de 15 mil pessoas. Pouco ócio. Horas e horas sem parar a saltar de emprego em emprego. A limpar o bureau, a “fazer vidros” nos bâtiments, a trabalhar na construção civil ou nas casas das patroas.
Tudo era grande para quem antes a aldeia era o Mundo. O dia era noite. A entrada e a saída de casa tinham o escuro como espetador. Tiveram de enfrentar a língua e o metro num país que não dorme. Ver o preto pela primeira vez. Outros brancos. Raças. A tudo isto se resistiu. O único fim era pôr os francos no banco a uma boa taxa de juro. Chegou a render a 30%. Muitos iludiram a mente e regressaram para anos depois voltarem. A algibeira pesada era a pensar no futuro dos filhos, deixados no país sob a alçada dos avós ou de um familiar próximo. Por entre baba e ranho, os ralhos e o pensamento vertiam para o torrão natal. Em todos, a missão de construir a casa na terra, comprar uma junta de vacas e alguns lameiros e leiras. Por entre este sombrio caminho, havia luz ao domingo, tantas vezes saída pela voz de Linda de Suza.
Não houve artista tão consensual para o emigrante radicado em França. Não espanta os 20 milhões de discos vendidos. O crescer foi tão meteórico que em 1983 já atuava no Olympia de Paris. Um farol inspirador que galvanizou a extensa comunidade emigrante. Os políticos não lhe resistiam. Mário Soares, Jacques Chirac e Mitterrand não dispensavam o impacto de Linda de Suza sempre que havia diplomacia entre ambos os países.
Encarnou a dificuldade e o vencer. Uma lutadora que espalhou portugalidade. Chamaram-lhe a "Amália da França", nome maior da lusa pátria que anos antes tinha aberto autoestrada para nomes como Tonicha, Lenita Gentil e Cândida Branca Flor. Um furacão que ecoou em cinco línguas: alemão, inglês, espanhol, francês e português.
A memória é curta. Doa o que doer. Faça-se o que se fizer. Hoje, mais do que em qualquer época, o ser humano não consegue parar. A informação entra em nós e envelhece. Não há espaço para amaciar a palavra. É nesta desmemória que vive a herança de Linda de Suza. Esquecida, tem os ossos estendidos numa cama de hospital. Por estes dias, a revista France Dimanche, garantia que a artista sofre de graves distúrbios mentais que lhe provocam alucinações com «uma luta entre as forças do bem e do mal».
Outrora, foi relâmpago em palco. Hoje é uma teia de mofo. Madrasto tempo este. Salvam-se as músicas e uma geração que não esquece uma voz que ajudou a diminuir a saudade de pais e filhos. A ter mais orgulho de um país que não tinha soluções para acolher os seus. Deixo aqui o meu aplauso a quem nunca teve vergonha de quem a pariu. Um exemplo que desfigura o oco diário e que relembra que todos os sonhos do Mundo podem sair de uma mala de cartão.

Deixa o teu comentário

Últimas Escreve quem sabe

18 Julho 2025

De Auschwitz a Gaza

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho