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José Pinhal

Nevoeiro soprado, verão sem mergulho adiado

José Pinhal

Escreve quem sabe

2023-11-09 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Por estes dias voltei aos Açores com a minha tribo académica. Regressei, como da primeira vez, com a alma em bálsamo, com a certeza reforçada de que visitei um dos paraísos da terra e com um nome artístico que nunca tinha lido, muito menos escutado. Foi uma fárrea dentro da viatura alugada. A Terceira ficou-nos marcada por esta descoberta que metade do grupo desconhecia. Um fulgor que ligou os vários pontos da ilha e que originou incontidos ciclos de humor e graça.
Acredito que a maioria que me está a ler nunca ouviu falar em José Pinhal. O nome, só por si, não augura grande voo. Não espanta que, em mais de 20 anos de carreira, nunca tenha passado a fronteira do Grande Porto. Cantor de baile, natural de Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, Pinhal teve apenas estrado em arraiais, boates e bares. O curriculum termina, tragicamente, em 1993 num acidente automóvel quando regressava de um concerto. Para a posteridade deixa três volumes em cassete (1984, 1985 e 1991) editados pelas Edições Nova Força.
Descrito o contexto, tudo encaminhava para hoje não restar vivalma de memória. Porém, quis o destino que os últimos tempos dessem a José Nando – nome verdadeiro – o holofote que nunca teve em vida. A ressurreição ganha esboço em Paulo Cunha Martins ao esbarrar com as canções do artista num apartamento no Porto, outrora escritório de Cipriano Costa, agente de José Pinhal e de rostos como Herman José e José Cid.
Volvido algum tempo, o renascimento ganha corpo com a decisão de um fotógrafo e DJ de música portuguesa, de nome Paulo, ao digitalizar os conteúdos para um CD. O ficheiro áudio cedo ganha adeptos. O “boca a boca” faz de José Pinhal um assombro de procura. Começam a ganhar vida, em festas de nicho, temas como “Tu És A Que Eu Quero” (Tu Não Prendas O Cabelo), “Porém Não Posso”, “Covarde” e “Baby Meu Amorzinho”.
Hoje a música deste malogrado compositor está espargida pelas redes sociais. Só no Youtube estão mais de três mil vídeos publicados muito por culpa de uma banda que viu a luz do dia, em 2016, com um único objetivo: prestar tributo ao músico.
Os sete membros do grupo “José Pinhal Post-Mortem Experience” (Zé Pedro Santos, bateria; Zézé Cordeiro, baixo e voz; João Sarnadas, guitarra elétrica e voz; Tito Silva, teclas e trompete; David Machado, saxofone; Nuno Oliveira, percussão e voz e Bruno Martins, voz) têm rendido homenagem a esta história incomum, um pouco por todo o país.
A reboque da notoriedade na Internet, os fãs começaram a galgar a zona de conforto onde a voz ecoou. O país, pouco a pouco, rendia-se a um timbre que não deixou pegada no passado. As peças do puzzle iam encaixando, tornando-o irresistível. Nesse sentido, o fenómeno Pinhal tem novo capítulo quando é publicada, em 2020, uma curta-metragem documental intitulada “A Vida Dura Muito Pouco” – nome retirado da faixa de abertura do Volume 2, a segunda das três cassetes do artista – realizada por Dinis Leal Machado (pode ser visto na plataforma Filmin).
Este conto de fadas é de tal ordem imparável que ganha escala planetária, em fevereiro deste ano, com a impressão de um artigo no The Guardian. O jornal britânico descreve José Pinhal como um «ícone da kitsch-pop», resgatado da obscuridade, enquanto titula “The world wasn't ready for him” (O mundo não estava preparado para ele).
Para muitos, Pinhal é uma inspiração. Para outros, um absurdo só possível em tempo onde medra a crise de valores e de identidade. Inegável é o impacto que teima em não parar. Um furacão musical com fãs por todo o lado, na esmagadora maioria sem nunca o terem mirado ao vivo e a cores. Uma geração aos pulos que nem tinha nascido quando o cantor exibia o sonido peculiar da sua voz. Uma fama póstuma que coincide, lembra o diário britânico, com «uma reclamação da cultura tradicional por músicos portugueses, tais como David Bruno, Sónia Trópicos, Chico da Tina, Sreya, Conan Osíris e Pedro Mafama».
Com o mundo virado do avesso, esquartejado por guerras, este episódio é um deleite. A família de Pinhal, incrédula com o alvoroço, agradece e aplaude. Também o deve lamentar. O músico viveu numa era onde a Internet gatinhava. Hoje é um clarão que atravessou as fronteiras do híbrido, cassete, CD, ficheiro, YouTube, até chegar ao colecionador de vinil. Um vendaval de audiência. Só no online foi escutado um milhão de vezes. Um clamor em vénia com direito a documentário, artigos na imprensa nacional e internacional, banda de tributo, disco reeditado e merchandising com o seu nome.
Eis a nova vida de José Pinhal. Elástica e procurada. Bem diferente dos inertes dias das décadas de 70 e 80 onde pontificou, em tantas noites, o vazio das cadeiras, a rudeza dos poucos que apareciam e o odor sem abraço.
O som é o mesmo. A diferença é que hoje estranha-se e depois entranha-se. Há 30 anos foi mais um no palco dos invisíveis.

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