Correio do Minho

Braga, terça-feira

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Há afetos muito estranhos

A responsabilidade de todos

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Conta o Leitor

2021-07-20 às 06h00

Escritor Escritor

Rosa Pires

Há afetos muito estranhos que os humanos desenvolvem, que em mentes ditas normais, nunca tal coisa faria sentido ou admitiriam a si mesmos que seriam capazes de apanhar moscas ou mosquitos, em concha dentro das mãos, aqueles que mais vulgarmente apelidamos de “melgas”, e sem os magoar, abrimos de mansinho a janela empurrando-os suavemente para que as asas continuem operacionais e possam voar de novo em liberdade em busca de nova presa para lhe sugar o sangue.
Às vezes dou comigo nestas consumições, sem perplexidades ou receios pelos meus semelhantes, porque uma picadela de melga não é pera doce de se sentir e, a comichão, perdura por muito tempo formando bolhas como dentro de um tacho um molho a fervilhar e se não há um creme anti mosquitos à mão, por vezes uma esfregadela de vinagre nem sempre resulta!
Mas foi assim que da perplexidade passei a aceitar que todos os bichos têm o seu lugar nesta vida e ver a fazer isso dentro da minha sala ou noutro canto qualquer da casa, já não é novidade para mim, quando de simples moscas inofensivas o meu marido começou a ter a mesma forma de agir com as melgas.
Mas o problema e que dentro da sua mente se torna um dilema é quando a filha grita que há uma aranha quase microscópica que só ela consegue ver a esvoaçar agarrada à teia, no carro, na cozinha ou na cama dela!
Não sei que fobia ou medo ela desenvolveu por aranhas microscópicas, do escuro não tem ela, só destes bichinhos que me habituei a ver a fazer acrobacias e sempre que uma descia até às minhas mãos em miúda, era sabido e certo que uma carta do meu pai a minha mãe receberia vinda de França...
De bichos sempre vivi rodeada na casa dos meus pais que passar por entre eles não me despertava muita atenção. Daria por vezes um afago no dorso dos cães ou nos gatos e gostava principalmente do cheiro dos farelos, com que a minha mãe alimentava os pintainhos do aviário, que ela trazia ainda amarelinhos e improvisava o calor das penas das mães com lâmpadas a aquecê-los dentro de uma caixa de cartão.
Leitão não sou capaz de comer, não me convidem por favor, porque as memórias trazem me aquele que a minha mãe alimentou a biberão e para mim parecia quase humano reparo agora.
E foi assim que o pedido dos meus filhos foi sendo alimentado, mas muitas vezes adiado, mas como lhes prometi quando finalmente eu estivesse mais tempo presente em casa, que sim seria uma hipótese a ponderar já que o mais velho me foi dizendo anos a fio que eu sempre vivera por entre animais e não compreendia o desejo deles tão veemente para além dos peluches tão inertes e sem expressão!
Sempre me fizera confusão ter animais dentro de um apartamento, os nossos na casa dos meus pais tinham um quintal onde se movimentavam sem prisões ou falta de horizonte e não entravam dentro da casa que a minha mãe não suportava penugens.
Mas a quarentena foi o pretexto oportuno que os meus filhos conseguiram arranjar para me encurralar e, dei comigo a contradizer a vontade do pai e da pena que este já sentia, impossibilitado de abrir as mãos em concha e devolver à liberdade qualquer animal que entrava dentro da nossa casa.
Ele bem tentou demover esta vontade visceral dos meus filhos de terem um animal de estimação, fez contas ao que se iria gastar em alimentação, veterinário e sei lá eu... que nunca mais iriamos de férias.
Mas no dia que o novo residente viria para a nossa casa, lá fomos os quatro comprar uma transportadora, a caixa da areia e mais apetrechos para ele poder comer e beber.
Pelo caminho os pensamentos ainda eram os mesmos: iria ser um gato como todos os gatos, portar se como todos, os dos meus pais que se escondiam aparecendo só para comer, pois eram estas as minhas crenças indissipáveis.
Mas quando o vi, não sei que feitiço ele me deitou, vinha muito tímido sem olhar nenhum de nós, mas percebi não ser um sinal de indiferença, mas medo talvez e nessa noite quase dormi no chão da sala num cobertor que estendi a seu lado que os meus filhos no dia seguinte estavam mais abismados que eu e só repetiam: és mesmo mãe!
E as memórias de repente vieram todas distorcidas, as que eu tinha dos gatos na casa dos meus pais, vieram por entre os sentimentos que por ele, o Ollie, começavam a emergir quase sem eu dar conta, devagar como os passos dele sem ruído e o afeto recíproco que nascia entre nós os dois.
Está cá em casa há mais de um ano e por cada um de nós os quatro nutre formas diferentes de comportamento e de gostar.
O meu marido passado uma semana já fazia planos de levá-lo à rua qual cachorro com trela e um mecanismo eletrónico com acesso ao telemóvel, acaso ele conseguisse fugir lhe por entre mãos.
Já não saberíamos viver de outra forma sem um animal dentro da nossa casa, já que todos os outros não sei que o Ollie lhes fará, mas não há moscas ou melgas e aranhas, já não me lembro de a minha filha gritar pelo pai que uma a vai atacar, não sei bem como se eram sempre tão invisíveis.
Ele passeia se por todos os cantos, não reclama dos afetos até os pede de forma diferente a cada um de nós.
Se quer brincar traz na boca uma bola que agarra entre os dentes e, tal nunca vi, os dos meus pais fazerem, que por vezes penso que ele não é só um gato, não mia como os demais, às vezes parece me que me imita os sons, mas uma mistura de cão e de todos os outros animais e escolheu ficar entre nós de forma que as melgas não nos venham importunar ou advertir que precisamos de ter animais mais perto de nós e não lá longe na minha infância que não se misturavam dentro da nossa casa.
Reparo agora o que era tão evidente, mas o tempo só nos dá esse entendimento em pontos exatos da nossa vida, a comunicação era possível a mesma que agora vejo eu mesma e o meu pai nutria por todos os nossos animais. Passava mais tempo no quintal e todos os seguiam e ainda seguem e agiam de forma especial com ele.
E a forma como as moscas e as melgas se encaixavam nas mãos do meu marido, como se soubessem que ninguém ali lhes faria mal algum.
Façanha que eu nunca entendi ainda, apesar de ele dizer que a estratégia é agarrar nestas no sentido contrário ao seu voo.
Há afetos que eu ainda estou a entranhar para os aceitar com normalidade, sinto que ainda não é tarde de todo para percebê-los pois, se há um tempo para tudo e com serenidade e aceitação, a vida fará sempre mais sentido em cada momento que ela se processa.

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