‘Spoofing’ e a Vulnerabilidade das Comunicações
Escreve quem sabe
2018-04-06 às 06h00
Vasculho na memória o homem de onde vim. Remexo nos bolsos à procura das carícias masculinas, afagos perdidos na vida, mimos furtados pela mulher que afirmava amar-me em exclusivo, como se eu fosse pertença dela e não pudesse ser amado por mais ninguém. Amor irrepartível. Amor estanque. Posse desmedida.
Era quem me gerou que dizia, com acidez, o teu pai foi levado por um rabo de saia. Na escuridão do quarto, enovelado nos lençóis ensopados pelas águas por mim vertidas, abraçado à girafa de peluche que guardava o perfume do homem de onde vim, imaginava-o a ser raptado por um bicho medonho, de bocarra escancarada, rabo comprido e saia rodada, o monstro que o levara para sempre. O monstro que me levaria a mim, na boca da mulher que me gerou, se continuas a perguntar por ele, se não te portares bem, se não me obedeceres, que te sustento e te crio, sozinha, com tanto sacrifício e provação.
A girafa de peluche aturava-me o pesadelo de provável órfão de pai e mãe. A girafa de peluche enxugava-me o medo e a culpa despejados pelos olhos escancarados, a vaguearem nos temores agigantados pelo papão da noite. Olhos iguais aos do homem de onde vim, que se foi, levado pelas minhas imperfeições. Olhos que me iludiam, quando pensava vê-lo à saída da casa para onde mudámos, na esquina da escola nova, em todo o lado, disfarçado de Pai Natal, de Coelho da Páscoa, de Super-Homem, sentado no lugar de honra no Dia do Pai, junto à professora que perguntava, o que queres ser quando fores grande, meu lindo. Respondia o Francisco, médico, como o meu pai. Respondia o João, polícia, como o meu pai. Respondia o Manuel, camionista, como o meu pai.
Respondia, Grande, como o meu Pai.
Não percebia as estranhas proibições impostas por quem me gerou, não vás à caixa do correio, não atendas o telefone, trim, trim, trim, ela, rubra e esbaforida, estou, enganou-se, número errado, não insista, não o quer ver nem pintado de azul, não lhe chega a lambisgóia? Eu, intrigado com os impedimentos e as negações, perturbado pelas misteriosas ausências paternas, a questionar-me, o que é uma lambisgóia, a visionar uma jibóia azul a lamber o ar com a língua viperina, a enrolar-se no meu pescoço frágil, a azular-me o rosto triste, a sufocar-me de ansiedade, desamparo e solidão.
Cresci na ausência do homem de onde vim, a desejá-lo em cada soprar de velas de aniversário. Cresci na ocultação, na amargura e na inverdade. Mas a verdade tem só um caminho, vem sempre a cima, como o pescoço da girafa.
A caixa surpresa trazia a abraçá-la a fita azul-celeste, que outrora enfeitara o berço embalador dos meus primeiros sonos meninis, serenos, celestiais, acompanhados pelas pátrias cantigas de ninar. A caixa surpresa trazia a nossa vida não vivida, Pai. Cofre de migalhas de afecto que não te saciava. Li as cartas por ti escritas, devolvidas ao remetente, papéis impregnados de saudade, de carência, de ternura; postais com bonecos divertidos e garridos, balões coloridos, girafas castiças a felicitarem-me pela passagem de mais um ano de idade, a congratularem-me por cada vitória escolar ou desportiva; documentos oficiais a comprovarem a tua não desistência de mim; páginas de entidades a confirmarem o envio do meu sustento mensal, o teu cuidado para que nada me faltasse. Faltaste-me tu, Pai.
O tempo foi escasso para nós. Como a mulher que me gerou, o tempo não se compadeceu da nossa mágoa. Afastaram-nos um do outro antes do prazo de partilha expirar. É irónico o destino. Levou-te para sempre deste mundo no dia em que recebi a caixa surpresa e afaguei a fita azul-celeste, cadeado do cacifo dum amor proibido, a fita de cetim enxugadora do meu pranto, recebedora dos beijos guardados para ti.
Tempo. Ignoro quanto me resta. Rogo ao tempo que me ajude a aplacar a dor corrosiva, a dor sem contemplações pela perene orfandade paterna, a dor que me apunhala desde aquele fatídico instante na infância em que os nossos trilhos se apartaram por vontades alheias, a dor que se aviva ao saber do teu sofrimento e da minha perda irreparável.
Rogo ao tempo que me dê tempo para perdoar à mulher que me gerou.
Quero tempo para ser Grande, como tu, Pai.
06 Outubro 2024
04 Outubro 2024
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