Correio do Minho

Braga, sábado

- +

Gorbatchev

As férias e o seu benefício

Gorbatchev

Escreve quem sabe

2023-03-03 às 06h00

Ricardo Moura Ricardo Moura

Entre os vários políticos que desceram à terra recentemente, há um que inquietou a minha infância. Entrava na televisão em lustro. Um ser diferente que acossou os meus anos 80. Isto não significou nada de mal. Pelo contrário. Despertou-me interesse pelo que dizia. Invoco Mikhaïl Sergueïevitch Gorbatchev, o homem que provocou um milagre na Europa ao contribuir para o fim da Guerra Fria e para o desabar das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e da Cortina de Ferro ao mesmo tempo que restituiu a liberdade e a soberania a inúmeras nações do Leste e do Cáucaso. A base deste terramoto geopolítico está nas reformas que lançou para alcançar a "glasnost" (abertura) e a "perestroika" (reestruturação). A reboque, foi possível assistirmos à reunificação da Alemanha e ao desarmamento nuclear com os Estados Unidos. São mais de 40 anos de paz. Em particular a minha geração deve-lhe este reconhecimento e gratidão. Um político raro, difícil de descortinar no presente.

Porém, o legado deste ícone – selou aquilo que Lenine começara em 1917 – não é consensual. Se no Ocidente é reverenciado, Gorbachev tornou-se uma figura odiada por muitos russos que o culpam pela destruição do outrora poderoso império soviético, o mesmo que Putin tenta agora resgatar. Uma espécie de pária no seu próprio país. Não estranha esta dicotomia se pensarmos o quão difícil deve ser governar este gigante com 11 fusos horários, dos quais três ficam na Europa e oito na Eurásia.
Importa entender este homem que faria esta semana 92 anos. Filho de pai russo e mãe ucraniana, cresceu com o clarão da União Soviética, no seio de uma família de camponeses. Todavia, o esplendor da bandeira chocava com as agruras da II Guerra Mundial e com a fúria do governo repressivo de Stalin. Para além da Rússia, havia mais 20 países que compunham o grande Império. Este facto, só por si, dá para imaginar o quão difícil e importante foi a introdução da perestroika ao despertar sonhos adormecidos de liberdade e soberania.

O trabalho de mina começou a ser esgravatado quando assumiu o maior Estado do Mundo e a segunda superpotência em 1985 no cargo de secretário-geral do Partido Comunista. A herança era brutal. O reinado de Leonid Brejnev (1964-1982) deixou o país estagnado e com uma guerra em curso no Afeganistão. Os líderes seguintes – Andropov e Chernenko – estavam tão doentes quanto o país. Até 1991, desfilou políticas que esbarraram com a ideologia reinante do Kremlin. Ao querer alavancar a economia, instaurou a modernização tecnológica e aligeirou a burocracia. As liberdades de expressão e de informação foram ampliadas. Cultivou relações com Margaret Thatcher, Ronald Reagan e Helmut Kohl, nomes barómetro no mapa político mundial. Aliviou o controlo sobre os países-satélite da URSS, dando-se a queda do Muro de Berlim. Foi o rastilho para a desintegração do Império. A União Soviética começou a falir quando a Lituânia declarou a independência em março de 1990. Um abalo sísmico que destilou admiração externa e ódio interno.

O oitavo e último líder soviético não recuou nos vários acordos de desarmamento. Nesta ótica, inesquecível o carimbo no fecho de 1987 com o presidente americano Reagan para a destruição dos arsenais de mísseis de médio alcance com ogivas nucleares. A Europa de Leste passou a libertar-se com o degelo provocado pela perestroika. Não estranhou a ordem para o retiro das tropas soviéticas do Afeganistão. Dezenas de milhares de presos políticos foram libertados. Em 1986, a catástrofe de Chernobyl foi um ponto de viragem histórico ao exigir outra liberdade de expressão na União Soviética, ao ponto de o sistema, tal como o conhecíamos, se ter tornado insustentável.

A meu ver, é inegável a resiliência de Gorbatchev para democratizar o sistema político do seu país e descentralizar a economia. Nobel da Paz em 1990, foi ele o protagonista da queda do regime comunista e quem provocou o desmembramento da União Soviética em 1991. Porém, o “ninho de ratos” vingou. O seu destino político ficou traçado após um golpe da ala conservadora e a reação dos reformistas pró- liberais, encabeçada por Boris Ieltsin. Vinha à tona a hostilidade dos militares e da linha dura do partido.
Revolta saber que um homem que teve a ousadia de mudar o país foi tão desprotegido. Em vez de auxílio, encontrou ganância, triunfalismo e cegueira no aproveitamento da vitória na Guerra Fria. Foi o homem certo no momento errado. Apesar de todo este heroísmo, não prevaleceu a paz em várias repúblicas soviéticas. Nacionalismos com combustível permanente, casos do conflito entre Azerbaijão e Arménia; na Geórgia; Uzbequistão e a repressão das tropas soviéticas após a independência da Lituânia. Buracos que não apagam a memória de um homem avançado no tempo no qual o Ocidente não o acompanhou. Tantos anos depois, a guerra que dizima a Ucrânia é o último espelho desse abandono.

Deixa o teu comentário

Últimas Escreve quem sabe

18 Julho 2025

De Auschwitz a Gaza

Usamos cookies para melhorar a experiência de navegação no nosso website. Ao continuar está a aceitar a política de cookies.

Registe-se ou faça login Seta perfil

Com a sessão iniciada poderá fazer download do jornal e poderá escolher a frequência com que recebe a nossa newsletter.




A 1ª página é sua personalize-a Seta menu

Escolha as categorias que farão parte da sua página inicial.

Continuará a ver as manchetes com maior destaque.

Bem-vindo ao Correio do Minho
Permita anúncios no nosso website

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios.
Utilizamos a publicidade para ajudar a financiar o nosso website.

Permitir anúncios na Antena Minho