Correio do Minho

Braga, terça-feira

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Gente sem pó

A responsabilidade de todos

Escreve quem sabe

2018-06-29 às 06h00

Joana Páris Rito Joana Páris Rito

Omar é infinito como o meu pranto contido. Verti as derradeiras lágrimas no chão da terra onde nasci, reguei-a de água salgada, num planger de despedida. Roubaram-nos o chão, somos gente sem pó à deriva no mar, prisioneiros em jangadas, náufragos moribundos à espera dum poiso seguro que tarda em chegar. O silêncio alastra-se. Ouvem-se os rangeres da fome e os estalares das línguas ressequidas. Lábios gretados, peles desérticas, braços descaídos, pernas encolhidas, olhos esbugalhados outros cerrados. O balançar da embarcação deixou de nos enjoar. Emba- la-nos numa ladainha marinha, conta-nos a nossa história de guerra, de terror, de desterrados.
A nossa terra deixou de ser nossa. Pertence aos piratas, aos terroristas, aos raptores, aos guerrilheiros, aos interesseiros. Para eles, é um éden de oportunidades.
Lucram com o tráfego de carne humana, gente a quem furtam os órgãos, gente a quem escravizam os corpos, gente a quem forçam as sendas da prostituição, gente usada como cobaia, em nome da evolução farmacológica focada na salvação da Humanidade, na extirpação das doenças, no prolongamento da efémera existência. A ironia de um Mundo melhor para um punhado de bafejados pela sorte, um Mundo sadio, sem enfermidades nem pandemias.
Lucram com o comércio de armas, fornecidas por aqueles que nos bastidores fingem negociar a Paz, uma Paz podre, demagoga, oportunista.
Lucram com as trocas das riquezas naturais que sustentam o Mundo.
Evocam a Palavra de Deus. Usam-Na para legitimar as suas acções, como se Deus, Criador do Mundo, quisesse vê-lo destruído pelo Homem.
O Homem por Ele modelado com o pó da terra, ao soprar-lhe nas narinas o fôlego da vida.
Tudo vem do pó. Tudo retorna ao pó.
A nossa terra deixou de ter casas, escolas, estradas, hospitais. É uma amálgama de escombros, esqueletos fumegantes assombrados pelo requiem dos tiros, das bombas, das granadas. Ecoam-nos os gritos de guerra, gritos de mulheres violadas, viúvas, órfãs de irmãos e de filhos, gritos de crianças estropiadas sem colos protectores, gritos de homens dilacerados, uivos de escassos cães vadios que escapam aos predadores humanos e famintos.
A nossa terra deixou de ter campos verdes e castanhos. São vermelhos e cinzentos, tingidos pelo sangue, fendidos pela seca, rasgados por feridas putrefactas e estéreis, atapetados pelas cinzas sopradas pelos ventos de guerra. A míngua amortalha os corpos das gentes. Os animais morrem, tombam de fome, magros, enxutos. Os abutres sobrevivem. À semelhança dos donos da nossa terra, empanturram-se em festins de carnes cadavéricas.
Fugimos do inferno. Tudo o que temos veio connosco: as memórias, a única roupa encardida, a trouxa pindérica, o cheiro do medo, a garra do abutre espetada na garganta afónica, a sobrevivência, a dignidade. O último dinheiro serviu para pagar aos candongueiros das rotas dos foragidos, que nos venderam o caminho da salvação, feiraram a esperança e apregoaram a terra prometida.
Somos uma diáspora miserável de impotentes e despojados em busca dum recanto pacífico, onde possamos viver sem as ameaças dos horrores, ter trabalho, ter lar, ter justiça, ter saúde, ter educação. Um ser sem terra não cria raízes.
Senhor, Senhor, por que nos abandonaste?
A mudez mórbida do cair da noite abalroa a embarcação. Um tossir desalentado, um gemido de dor, um vagido infantil, um suspiro de amor. Sons esvaídos que desvendam a persistência da vida e esconjuraram a morte. O balancear cadencia as respirações. A brisa alenta as almas. Os olhares perdem-se no horizonte longínquo.
Escuta-se um ruído difuso. Atentam-se os ouvidos. Abrem-se os olhos. Levantam-se os corpos.
Um barco aproxima-se. As vozes alteiam-se. Os braços erguem-se. Os risos soltam-se. Os abraços acontecem.
Senhor, Senhor, Tu não nos abandonaste.
Pisaremos a terra. A nossa nova terra.
Retornai ao pó, Filhos dos Homens.

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