As férias e o seu benefício
Escreve quem sabe
2021-04-23 às 06h00
Quando escrevo forno do povo tenho os olhos no Barroso. Há nele a caricatura da minha infância. É com ele que cozo os primeiros rabiscos da memória. Nem tudo é sorriso, nem tudo é amargo. É um pôr do sol encoberto. Um fio de luz que rasga o cinzento do fumo. Um entrar sem porta.
As saudades são cozidas. Tricotadas. Ainda sinto o chão da terra amaciado pelos socos abertos e pelas galochas. A lama esbatia-se pelo calor de homens e mulheres, acotovelados, à espera do gadinho. A capa de burel, aqui e acolá uma croça de junco, o xaile e o avental, lembravam traços de Gostofrio, o planalto barrosão ficcionado de Bento da Cruz. Era um sacrário de identidade.
Gosto de ouvir. Naquele tempo ouvia-se. Uma escuta onde cada um semeava história. Havia memória nas palavras. No contar. No lembrar e relembrar. O roído era a chuva e o trovão. Não raras vezes, a conversa era temperada pela neve. Um afago que estendia a mão.
O valor da mão estendida observei-o de tenra idade no forno do povo. Numa altura em que é difundido o estudo “Pobreza em Portugal - Trajetos e Quotidianos”, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos – onde lemos que um quinto da população portuguesa é pobre e onde a maioria (32,9%) dessas pessoas trabalha – invoco o que vi no início dos anos 80. Naquele tempo, pobre não era ter salário baixo ou emprego precário. Pobre era não ter, à letra, casa, roupa e comida.
Na minha aldeia, surgia gente do nada. Dormiam no forno ou, de quando em vez, em algum teto de família de coração mais mole. Ver alguém que não conhecia, roto por dentro e por fora, com pele encardida, rebentava-me o olhar. Com frio no Inverno, ou calor no Verão, o forno do povo era a carícia do dia e o abraço da noite. Escondia a dor e mascarava a sujidade da vida.
Entrar no forno do povo era tocar no melhor do homem. Havia sempre alguém que tinha no bolso um naco de pão. Este partia-se com as mãos. Dava para quem não tinha. Um dar sem troca. Por vezes, via- se parte de uma chouriça embrulhada num lenço, uma bilhó de castanha ou um pedaço de unto.
Este entreter medrava os dias. Os fins de tarde ou princípios de noite eram os momentos de maior aglomerado. Os homens falavam do “boi do pobo”, do aricar das leiras, do arranque do esterco das cortes, dos carretos da lenha e fisgavam a conversa na esperança de driblar o vizinho na torna da água no lameiro. Pelo meio, histórias de lobos, perdas de cabritos e uma invisível felicidade em dizer que este ano foram o “raminho” no arranque das batatas. As mulheres, quase sempre encostadas à parede, faziam na meia ou fiavam na roca. Era de lá que saíam os carpins de lã para aconchegar os pés. Os rapazes jogavam ao pião, ao fito ou ao espeto (prego). O berlinde e o pique (botão) chegaram mais tarde. As raparigas à cabra-cega, às escondidas, ao lencinho ou à macaca.
Antes de aparecerem os fornos particulares, o pão centeio saía de uma estrutura de pertença que tinha um valor patrimonial incalculável. Era de todos e de ninguém. Os homens iam ao monte buscar lenha. Ao baldio. O valor da lenha era tanto que as árvores mais nobres eram preservadas. Cortar um carvalho era não respeitar os antigos. Via-se pouco. Só na última. Os caminhos agrícolas estavam limpos, longe da praga dos incêndios sem rosto. Cozia-se para um mês. O pão não ficava duro. Moía-se nos moinhos da aldeia. Ainda hoje inalo a falta desse cheiro. Pão e bica eram os aromas maiores desse meu tempo, só comparáveis à fragrância do Outono.
O tempo era prenho de vida. Construía saudade sem fotografia. Caminhar naquele Barroso era saber que tínhamos alguém à espera. A casa era repousar o olhar. A do vizinho, segurança. Por entre os enganos do estômago, havia sempre uma badola, uma vaca que paria, uma cabra que trazia dois cabritos e uma ninhada de rapazes à volta. Uma terra farta que pariu homens e mulheres com espinha direita. Havemos de ajustar mais contas para que este Mundo não acabe.
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