Fala-me de Amor
Ideias
2024-09-20 às 06h00
Avisaram-nos de madrugada: o fogo sobrevoava os montes e rodeava a pequena aldeia. Quando lá chegamos, da varanda de casa ora adormecia um pouco, ora rebentava forte, aproximando-se cada vez mais.
Não há formas de descrever a angústia que se sente! O fogo é uma das forças da natureza mais fortes e imprevisíveis. Somos fascinados pelo fogo, atraídos pela sua força e beleza, pela sensação de conforto, pela magia que o envolve. Na memória dos tempos, o fogo garantiu-nos a proteção contra predadores, permitiu-nos produzir instrumentos de caça cada vez mais eficazes, criou condições efetivas para o aumento da população e para a sua dispersão geográfica. Pelo fogo se cozinhava, e à volta do fogo se reuniam as pessoas e se discutiam estratégias, contribuindo para nos transformar nas criaturas sociais que somos. O fogo foi-se tornando um símbolo das mais fortes emoções e do conhecimento, pelo fogo se foi construindo a relação com Deus. Em algumas religiões, por exemplo no Hinduísmo, o fogo é visto como uma força purificadora.
Mas perante os montes que em frente de casa ardiam, cada vez mais e cada vez mais perto, a única emoção era mesmo o medo secular, antigo, profundo do incontrolável. A racionalidade dizia-nos para ir embora, mas a proximidade do fogo à casa prendia-nos ao chão, como se a emoção bastasse para salvaguardar memórias.
Nas semanas anteriores tinha havido já ameaças. Embora proibidas, as queimadas feitas por populares rebentavam aqui e além. E as pessoas contavam do A. que passava e deitava um cigarro, do carro B. que circulava uma, duas, três vezes sempre incendiando em redor de forma propositada, do C. que usava máquinas agrícolas perigosas. Por aqui e por ali, ouvem-se as teorias, as explicações, habituais – a presença dos eucaliptos, o argumento que fica mais barato deixar arder do que limpar os terrenos, o papel dos madeireiros e os interesses ligados á prestação de serviços de defesa dos incêndios, as alterações climáticas. Argumentava-se que faltavam os meios aéreos, deslocados para o sul do Douro, para o distrito de Aveiro. Os populares, diversos, procuravam garantir inter-ajuda, enquanto o desespero e a zanga dominava os olhares.
Entretanto, a imprensa noticiava a chegada de reforços disponibilizados por outros países europeus. De Espanha, dizia-se, chegariam 200 membros de uma equipa militar especializada em emergência. Militares? E porque não em Portugal? Estarão a fazer manobras para invadir Olivença?
A dimensão atual dos fogos, na minha opinião, tem fundamentalmente uma leitura económica.
Há umas semanas apenas estive em Castro Laboreiro. Uma paisagem belíssima, um restaurante excelente e marcado pela qualidade. Enorme, estava cheio de turistas, e por entre as mesas passeava-se um robot trazendo os pratos da cozinha. Castro Laboreiro foi vila e sede de concelho entre 1134 e 1855; nas ultimas décadas tem perdido população de forma sistemática. Em 2011 tinha 540 habitantes, hoje certamente menos. Não tem uma escola, e os poucos jovens que por lá vivem são repescados por autocarros para escolas de maior centralidade, ou vão estudar para longe. A escassez de oportunidades, a par do envelhecimento da população, leva as pessoas para longe.
A urbanização faz parte do processo de crescimento, é mesmo essencial para a transformação económica, para a inovação, para a geração de rendimentos. Hoje em dia, cerca de 56% da população mundial vive em cidades, onde é gerado mais de 80% do PIB global. O mundo mudou de forma drástica, e a escala do processo de mudança trouxe muitos desafios.
Na década de cinquenta, o setor agrícola em Portugal representava mais de 33% do nosso PIB, e cerca de metade da população ativa estava empregue na agricultura. Atualmente, a importância da agricultura na economia nacional é reduzida; em 2023, o valor acrescentado do setor representava apenas 1,8% do VAB nacional, ainda que tenha registado algum ligeiro crescimento. Cerca de 80% das explorações têm um caráter familiar, perto da subsistência, com uma área diminuta, e marcadas por uma baixíssima competitividade média. Em 30 anos, o número de explorações agrícolas diminuiu cerca de metade, mas muitas outras estão abandonadas, apesar da emoção que as memórias acarretam.
Estratégias como a limpeza dos terrenos é fundamental, conforme as imagens e o que vemos nestes montes que ardem à nossa volta. Mas a propriedade rural é demasiadamente fragmentada. A viabilidade económica dos territórios rurais que permita a promoção de ganhos de competitividade, a atração das populações, o desempenho de funções tão importantes quanto a preservação da biodiversidade, a gestão adequada dos recursos, a coesão económica e social e a descarbonização da economia – é aí que está o busílis da questão. Marcado por uma grande dificuldade política e cultural.
Entretanto, o fogo consome os montes, e a angústia vai mais fundo...
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