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À flor da palavra

“Portanto, saibamos caminhar e …caminhemos!”

À flor da palavra

Voz aos Escritores

2023-03-03 às 06h00

José Moreira da Silva José Moreira da Silva

Quem não gosta de flores, da sua beleza, dos seus aromas inebriantes, das abelhas e dos jardins, da poesia que tudo impregna em seu redor? Encontrar alguém a não amar as flores seria estranho, e muito mais o seria se tal alguém fosse poeta. Camões não seria, com certeza, ele que pôs lírios nas faces da sua amada. Pessoa também não, pois a sua frescura ainda persiste no seu pensamento. Garrett muito menos, tal o enlevo com que se expõe nas «Flores sem fruto».
Os poetas amam as flores, e é nelas que põem, transportando-os, os seus sentimentos. Ai flores, ai flores de verde pinho, canta a lírica galego-portuguesa, Manuel Alegre e Carlos do Carmo, pondo no poema e na música a mais profunda emotividade.
Emoção à flor da pele, na superfície dérmica, prestes a explodir. Há pessoas que andam, sistematicamente, com os nervos â flor da pele. E eu, que compreendo o significado desta expressão fixa, vacilo na origem dela, no entendimento da forma como a palavra «flor» nela se sentou (século XIV, em França?). Não tendo informação rigorosa sobre a origem da expressão, sei, no entanto, que o étimo «flos, floris» ampara a «flor» portuguesa e espanhola, a «fleur» francesa, a «fiore» italiana e até a «flower» inglesa, para além de um conjunto de neologismos, entretanto formados, «flora», «floral» ou «floricultura».

Se «à flor da pele» me seduz, mais me seduzirá o equivalente, não sei se já criado, mas que aproveito para relevar, «à flor da palavra». Leão Hebreu, que sentia a melhor poesia como a existente no interior do fruto, não diria, com toda a certeza, «à flor do texto», mas «no âmago do texto», pois poemar com a superfície da palavra remete, eventualmente, e apenas, para a componente significante do signo linguístico, o que lhe reduz, evidentemente, possibilidades expressivas. Para o que nos interessa, porque haveremos de ficar à flor da palavra se o que é relevante se encontra não à flor de, mas no cerne, no imo, na profundidade da oração ou do texto? Como interpretar o poema «As palavras» de Eugénio de Andrade a esta luz: «São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas»? Como compreender as palavras «cristal», «punhal», «incêndio» e «orvalho» sem a sua inserção num texto interrogativo que apela à sua insegurança significativa, à memória, à ação humana, à sintaxe e ao sentido absoluto – a sua semântica última? Procuro na história das línguas, desde a matriz latina, pelo menos, a inócua e bela flor. Remetem-me para fenómenos fonéticos, para uma chor inicial (ainda regional?) galego-portuguesa, para a frol das cantigas de amigo, e toda a explicação parece incompleta e bela como o parlamento do Álvaro de Campos. Ficaria bem «à chor da pele», ou «à frol da pele», isto é, seria mais sensitivo, mais poético? E que diríamos de «à frol da palavra»? Quão belas elucubrações se enraizariam no texto até surgirem em tronco, ramos e fruto? Será pertinente a equivalência semântica-hermenêutica das duas expressões? Penso no «Campo de flores», de João de Deus, e no poema «Beijo».

Beijo pedido, que é um, dois e três: «Talvez te leve/O vento em breve/Flor!/A vida foge/A vida é hoje/Amor.» Sinto, com o poeta, o arrepio da palavra «beijo», pedido uma, duas, três vezes, três, como as Graças e as Virtudes, à Flor da sua vida, à sua amada. Um arrepio à flor da pele, inebriante, e um arrepio à flor da palavra, levada na emoção até à conclusão final. Quem criou a expressão «à flor da pele» sabia muito de Amor, não tenho dúvida nenhuma!

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